Religião

Miguel cura doenças de todos, menos da própria mãe, que tem câncer

Fenômeno reflete o avanço da fé conservadora e sua associação ao sucesso pessoal


Reprodução Miguel cura doenças de todos, menos da própria mãe, que tem câncer
Pastor mirim Miguel Oliveira

Por Moisés Mendes em seu blog

A mãe do pastor mirim Miguel Oliveira tem câncer há cinco anos. Miguel cura pessoas com doenças graves, conversa com Deus em várias línguas, põe o diabo a correr e faz com que centenas de pessoas entrem em transe nos cultos da Igreja Assembleia de Deus Avivamento Profético, de São Paulo.

Miguel ainda não conseguiu, aos 15 anos, curar a própria mãe, porque também os enviados de Deus são imperfeitos e não podem tudo. Seus seguidores acreditam que é assim mesmo. Que ele cura, mas não pode curar todos.

Miguel é um assombro em performances presenciais e em vídeos. Inventa palavras. Tem a desenvoltura retórica de um adulto. É um ator pronto. E tem um poder de convencimento provado pelo sucesso na internet.

Miguel é um dos fenômenos mirins de uma safra de pastores que se espalham pelo país. Porque se alarga o mercado da fé, em todas as áreas e em todas as direções. E para pobres, remediados, ricos.

Foi-se o tempo em que figuras adultas, com o mesmo perfil teatral de Miguel, seduziam os que poderiam ser definidos como vulneráveis, ignorantes ou incautos. O que chamam genericamente de religiosidade substitui outras formas de agregar e provocar pertencimento também de gente com dinheiro.

Miguel é a juvenilização dessa espiritualidade, com 1,2 milhão de seguidores nas redes sociais, e não só devotos de pregações pentecostais. Executivos, empresários, esportistas se entregaram a algum tipo de expressão religiosa.

Acontece no Brasil, vem acontecendo muito nos Estados Unidos e se repete na redondeza. Muitas vezes com a pregação da fé associada à ideia de que a busca por Deus leva ao sucesso individual. E temos então o aperfeiçoamento, com figuras como Pablo Marçal, da teologia da prosperidade.

As religiões e outras formas de exercício da fé passam a substituir, com feições próprias do século 21, o que a ciência e a política parecem não conseguir mais oferecer. Miguel ‘rasga o câncer’ ou ‘filtra o sangue’ de pessoas fisicamente doentes. Outros fazem andar quem está psicologicamente imobilizado.

E agora, José? Perguntarão os que apostavam na evolução linear de todos os benefícios do iluminismo e se vêm diante de questões subjetivas que remetem não só a crenças pretensamente puras, mas também à suspeita de exploração das fragilidades humanas como negócio.

E esse é o dilema posto inclusive diante do Ministério Público, que convocou os pais do pastor mirim para que assumam o compromisso de não explorar o filho como se fosse um profeta que, se sabe, arrecada muito dinheiro.

É a religiosidade aliada a projetos de ascensão, de ideias disruptivas, de aposta no individual. As religiões seriam, pela exaltação de ganhos pessoais, o que sobra de ideia de coletivo. É nas igrejas, nas seitas, nos grupos que sobem montanhas para serem homens verdadeiros, que as pessoas estariam se encontrando com os seus semelhantes.

Não mais como um movimento de alienados que viram crentes, como a classe média esclarecida pensava que fosse até bem pouco tempo. Até porque essa classe média branca é hoje um dos mercados desses pastores pregadores de alguma coisa que conduza à transcendência.

Tudo na base do eu te acolho e tu vens para o nosso lado. E assim o mundo vai ficando não só mais religioso, mas mais conservador e, pelo que já se constata, mais preconceituoso e discriminador.

O fenômeno captura cada vez mais jovens e os mistura a pregações políticas. Associam religiosidade a sucesso, à superação de problemas pessoais, à agregação familiar e ao sentimento de pátria.

Nada é novo. Mas agora o ritmo é mais intenso, mais abrangente e mais efetivo. Perdem as esquerdas, que deixam da explicar o mundo a seu modo. Perdem a educação e a ciência. Ganham os que pregam ideias absolutistas. Ganha muito a direita e nova extrema direita.

Não é preconceito diante da fé alheia. É a realidade que se afirma pela busca de religiosidade onde estiver, como compensação – segundo alguns pensadores desse meio – pelo tempo de clausura da pandemia, pela perda de esperanças, pela constatação de que as soluções do século 20 não funcionam mais.

A religiosidade hegemonicamente conservadora, com as exceções de sempre, teria respostas para interrogações terrenas que não dependem mais das abstrações da Igreja católica, de que tudo se resolveria em algum céu imaginário. Mas depois da morte.

É aqui e agora, é pra já. A nova religiosidade quer respostas para qual é o sentido disso tudo, o que será de mim amanhã, como posso sair dessa enrascada agora, e não depois que morrer? São dilemas existenciais capturados pelos novos pregadores.

Tem espaço para todos, dos líderes que estão aí há décadas até os que estão chegando, como Miguel Oliveira, que segue os passos de modelos acabados, com origem em igrejas, como Nikolas Ferreira e similares.

Deus e o diabo devem saber o que estão fazendo. Segundo a pesquisa Global Religion 2023, do Instituto Ipsos, 89% dos brasileiros dizem acreditar em Deus. As pesquisas nunca informam quantos acreditam no diabo.

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