Mulher

Aborto!

Pelo projeto, a mulher que opta por interromper a gravidez está sujeita a punição maior do que o estuprador


Aborto!
Eli Borges pediu urgência em projeto de Sóstene Cavalcante e Arthur Lira fez parte do jogo

Por Luis Felipe Miguel, professor, no facebook 

Arthur Lira definiu regime de urgência para o projeto que equipara aborto a homicídio. Regime de urgência: isso significa menos discussão, uma tramitação aligeirada na Câmara dos Deputados.

Pelo projeto, tratado como prioridade pela extrema direita, nenhuma mulher poderá abortar no Brasil depois das 22 semanas de gestação, nem mesmo quando a gravidez for resultante de estupro.

Como nós sabemos, o acesso ao aborto legal é extremamente dificultado no Brasil. Por vezes, passam-se meses entre a mulher procurar o serviço de saúde e o procedimento ser efetivamente realizado.

A negação do direito ao aborto, até inviabilizá-lo, é a estratégia dos grupos obscurantistas “pró-vida”. Vimos esse filme, mais de uma vez, ser usado por Damares Alves e sua alcateia, em prejuízo de meninas engravidadas após estupro.

Esse é outro dado: meninas que têm a infância interrompida pelo abuso sexual, que se tornam mães sem estarem física, psicológica ou socialmente aptas, estão entre as maiores vítimas da criminalização do aborto.

Pelo projeto, a mulher que opta por interromper a gravidez está sujeita a punição maior do que o estuprador. Outro objetivo é intimidar os médicos, isto é, o acesso ao aborto legal torna-se ainda mais difícil. 

Não há solução que preserve a autonomia e a dignidade das mulheres, a não ser a descriminalização do aborto.

É necessário deixar claro: a protagonista da gestação é um ser humano, com uma vida, com projetos, com sentimentos e com capacidade de julgamento moral. 

A campanha da direita nega esta condição às mulheres, ao exigir que passem meses carregando em seu ventre o fruto de uma violência ou, então, um feto que fatalmente morrerá antes ou logo depois de nascer. É como se a mulher não fosse um ser humano, reduzindo-se ao recipiente que carrega o embrião ou o feto.

Uma violência física e psicológica que só se explica pelo sadismo misógino de muitos porta-vozes do fundamentalismo religioso.

É notável o contraste entre a preocupação com o embrião e a despreocupação com as mães e as crianças já nascidas. Em geral, os “pró-vida” são os mesmos que defendem políticas que reduzem o amparo às famílias – na saúde, na educação, na moradia.

Direito ao aborto anda junto com a defesa de uma maternidade voluntária e amparada pela sociedade, para todas as mulheres que a desejarem.

Os dados não são precisos, mas estima-se que ocorram cerca de 250 mil internações hospitalares anuais, no Brasil, por causa de abortamentos inseguros, levando à morte de uma mulher a cada dois dias.

Ignorar essa calamidade sanitária é uma crueldade.

Há cerca de 1 milhão de interrupções voluntárias da gravidez por ano no Brasil. Dados de todo o mundo coincidem: a proibição não reduz o número de abortos, apenas causa riscos às mulheres.

As ricas podem ir para o exterior ou usar os serviços de clínicas privadas clandestinas. São as pobres e também as mais jovens, quando não contam com o apoio da família, que precisam recorrer aos métodos caseiros inseguros.

E a legalização do aborto pode ser acompanhada por educação sexual (outra pauta que a direita se esforça por boicotar), reduzindo as gravidezes indesejadas.

A afirmação do direito ao aborto não obriga ninguém a abrir mão de suas crenças. Apenas define que tais crenças não podem ser impostas a outros.

A laicidade do Estado é uma condição necessária para a democracia. Não é possível pensar em soberania popular caso se julgue que o conteúdo das decisões políticas está decidido de antemão, por doutrinas dogmáticas.

Não é por acaso que a questão, até décadas atrás secundária, tornou-se central no momento em que grupos religiosos lutam para manter sua influência política.

A soberania sobre o próprio corpo é, já para os fundadores do pensamento liberal, a condição inicial para ter direitos.

Sem o direito ao aborto, as mulheres têm acesso apenas condicional a essa soberania. Quando engravidam, estão tuteladas, sob autoridade alheia.

E, ao definir que as mulheres não podem tomar por conta própria a decisão de prosseguir ou não com a gestação, a proibição do aborto nega a elas o estatuto de agentes morais plenas. É como se fossem cidadãs de segunda categoria, incapazes de exercer arbítrio sobre si mesmas.

Aborto legal e seguro não é demanda identitária, não é pauta de costumes, não é agenda moral. Estão em jogo a vida, a segurança, a autonomia, os direitos e a cidadania de todas as mulheres. É uma prioridade para qualquer pessoa que defenda a democracia.

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