Pensar Piauí

Um pouco sobre padre Ticão que morreu hoje

Algumas pessoas parecem imortais; pela sua energia, firmeza, paixão, Padre Ticão era uma dessas pessoas

Foto: FórumPadre Ticão
Padre Ticão

Por Rudá Ricci, sociólogo, no facebook 

Algumas pessoas parecem imortais. Pela sua energia, pela firmeza, pela paixão, parecem indestrutíveis, líderes de tarefas sucessivas, urgentes, sem fim. Padre Ticão era uma dessas pessoas e confesso que a notícia de sua morte parece inverossímil.

A última vez que estive com ele o encontrei na entrada da igreja de São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo. Ele ouvia, em silêncio, uma senhora que parecia angustiada. Logo depois, entramos na sala em que recebia os visitantes, abarrotada de panfletos e jornais. Ainda refletindo sobre a conversa com a senhora, comentou que a fome estava retornando e ele sentia isso todos os dias com famílias inteiras que pediam ajuda. Era governo Temer.

Ticão era uma pessoa diferenciada, muito engajada na mudança social. Não recordo com muita clareza quando o conheci. Acredito que tenha surgido de um convite que partiu de um dos alunos da Escola de Governo da USP, criada e inspirada pelo jurista Fábio Konder Comparato e pela socióloga Maria Victória Benevides. Eu era professor convidado dessa escola da USP que tinha como alunos jornalistas, advogados, ativistas sociais e lideranças sociais. Lembro ter ouvido falar de uma escola de formação de lideranças sociais na zona leste de São Paulo. Acabei sendo convidado para dar uma palestra para esta escola. Lembro que quando cheguei, fui recebido por um padre alto e corpulento com um sorriso contido no rosto. Trocamos algumas palavras e fui conduzido para um enorme salão paroquial, no subsolo da igreja. Ali começava o primeiro impacto: seiscentas pessoas aguardavam o início da atividade, numa sexta-feira à noite, sentadas em cadeiras brancas, dessas de plástico. No pequeno corredor que levava ao salão paroquial, uma grande mesa encostada na parede oferecia dezenas de jornais, panfletos, convocatórias para reuniões ou plenárias, livros. Ao ingressar no salão, à esquerda, uma cantina em que uma família vendia lanches feitos na hora (soube que era uma das tantas iniciativas de padre Ticão para ajudar a comunidade local).

O debate correu solto e muito animado. Para um educador popular, esta é uma das utopias que motivam nosso engajamento: seiscentas pessoas discutindo o Brasil, numa sexta-feira à noite. Padre Ticão iniciava e terminava os eventos da Escola da Cidadania com convites e anúncios. Sempre havia um abaixo-assinado a ser entregue ao prefeito ou governador, solicitando espaço para construir um campus de uma universidade pública ou uma visita a um órgão público para pressionar pela melhoria dos serviços. Sempre ouvi dizer que pela liderança de Ticão, a zona leste havia conquistado mais de 30 mil casas populares.

Passei a ser convidado com certa regularidade para dar palestras na Escola da Cidadania da zona leste. Numa dessas visitas, Padre Ticão meio que indicou que eu deveria acompanhá-lo. Entramos no carro e percorremos algumas de suas conquistas: equipamentos de atendimento de idosos, uma cooperativa de habitação popular, e um centro de atendimento de portadores de deficiência, onde almoçamos. Naquele momento, Ticão articulava mais uma dúzia de ações e frentes de luta. Lembro da avaliação dos cursos oferecidos pela unidade da UNIFESP que ele havia brigado para se instalar na zona leste. Discutia os cursos que acreditava ser mais importantes para a comunidade. A reitora, na época, era filiada ao PSOL . Ele não se sentia à vontade nas discussões ou engajamento partidário. Por este motivo, alguns diziam que ele era pragmático, mais à esquerda, mas sem alinhamentos. Alguns diziam que ele tinha proximidade com alguns líderes do PSDB, outros, com o PT. Era amigo e admirador de Erundina. O fato é que um dia perguntei porque não atacava Geraldo Alckmin e a resposta foi objetiva: “ele cumpre tudo o que acorda com a zona leste”. Havia, aqui, uma crítica velada ao governo Fernando Haddad.

Ticão se engajava, ainda, nas discussões das propostas para o Plano de Metas de São Paulo, esse instrumento e metodologia de planejamento que define as prioridades e ações estratégias do governo ao longo dos quatro anos de mandato. Sua paróquia promovia discussões para construir uma proposta popular a ser entregue ao governo municipal. Muitas reuniões envolvendo lideranças, entidades como a Nossa São Paulo e plenárias.

Além das preocupações com a Unifesp e o Plano de Metas, Ticão falava dos poucos equipamentos culturais nas periferias paulistanas. Lembro de seu entusiasmo – contido, como era do seu feitio – com o georreferenciamento que um colaborador havia feito sobre a distribuição dos equipamentos públicos municipais ao longo da cidade de São Paulo. Revelava nitidamente a desigualdade e as prioridades da prefeitura. Relatava, com o sorriso contido, como o secretário de cultura da cidade levou um susto quando este mapa foi projetado num telão, numa reunião naquele grande salão paroquial que fica no subsolo da igreja. Discutimos a possibilidade de criação de um centro de pesquisa e formação que pudesse criar vários desses levantamentos e estudos para municiar as lideranças. Uma espécie de observatório dos serviços públicos da zona leste.

Mais recentemente, se engajou na defesa da cannabis para uso medicinal. Um padre muitos anos-luz à frente da mentalidade de uma parte dos católicos que ainda vive nas trevas medievais.

Eram inúmeros projetos e frentes. Todos ao mesmo tempo. Todos urgentes.

A urgência, contudo, aparecia nas falas determinadas de Ticão, não nos gestos. Ticão não andava rápido, não falava rápido, não transpirava ansiedade. Mas, era muito determinado, resoluto.

Por isso, embora não se apresentasse como tal – aliás, pouco se importava com títulos ou avaliações sobre seu papel político -, era considerado uma das mais importantes lideranças sociais da cidade de São Paulo, temido pela igreja católica de antes do Papa Francisco, seu conhecido. A Folha de S. Paulo chegou a publicar uma matéria onde Ticão aparecia como um dos quatro “prefeitos informais” da capital paulista.

Não por outro motivo, recentemente foi ameaçado de morte por um desses grupelhos de extrema-direita que entende que religião é propriedade de alguma pessoa. A ameaça gerou uma reação popular forte. Aliás, andar por Ermelino Matarazzo e dizer que conhece Padre Ticão gera um salvo-conduto. Um dia, atrasado, acabei tomando um táxi para chegar à igreja de São Francisco. O taxista conversava animado, perguntando o que faria na igreja. Contei do meu envolvimento com a Escola da Cidadania e alguns projetos do padre Ticão. Foi o que bastou. Quando chegamos à igreja, o taxista não cobrou nada. Disse que amigo de Ticão era amigo dele. E se foi.

Esse é o amigo que a zona leste paulistana acaba de perder. Imagino a multidão que estará no seu velório. O sentido de vazio e orfandade que sua morte vai deixar.

Eu prefiro continuar nutrindo esta estranha sensação de que esta notícia não é real. Padre Ticão era grande demais para morrer assim, tão cedo, sem aviso. Prefiro continuar imaginando que estamos distantes alguns quilômetros que um celular transforma em segundos para termos uma conversa. É assim que é a maneira mais tranquila para lidar com a ausência de um amigo querido.

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