Pensar Piauí

Um defunto sem vela: a tal frente ampla

A “frente ampla” apareceu como nova oportunidade de normalização do golpe, mas ela morreu

Foto: Boi TempoLuis Felipe Miguel
Luís Felipe Miguel

Por Luís Felipe Miguel, no Facebook

O grande problema do golpe sempre foi como encontrar o caminho para sua normalização. Isto é, como deixaria de ser o ato de força que foi e teria seu legado (em retrocesso de direitos, redução do Estado e rompimento de políticas igualitárias, desnacionalização da economia) incorporado de vez à vida nacional. No sonho dos golpistas, a normalização se daria com a eleição de Alckmin em 2018: um conservador que encarnava o programa dos retrocessos, mas que receberia o aval das urnas. O eleitorado, porém, não se dispôs a cumprir seu papel nesse script.

A “frente ampla” aparecia, então, como nova oportunidade de normalização do golpe. Ao fazer com que a esquerda brasileira aceitasse ficar a reboque da direita “civilizada”, abrindo mão de toda a sua agenda em nome nem sequer da democracia representativa, mas simplesmente de um regime menos iliberal, Bolsonaro cumpriria seu último serviço aos golpistas de 2016: ser o bode na sala.

Depois de algum tempo, incluindo uma fracassada manifestação virtual pela “democracia” que programara intervenção até de Michel Temer, a frente murchou. Houve a oposição vigorosa de setores da esquerda, incluindo, com destaque, os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff. Mas, sobretudo, ela deixou de ser útil para a parte da direita que a animara – por ter cumprido uma boa parte daquilo a que se destinava.

A queda de Bolsonaro nunca foi o único resultado esperado dessa movimentação. A outra opção era domesticar o ex-capitão. Menos de duas semanas após a divulgação do manifesto, o presidente nacional do PSDB já descartava a possibilidade de impeachment – logo ele, que fora resgatado do baixo clero parlamentar pelo acaso de ter dado o voto decisivo no impeachment fraudulento que destituiu Dilma Rousseff. Mais do que esse canto de sereia, o que moveu Bolsonaro na direção desejada foi a prisão de Fabrício Queiroz, que o fragilizou e fez com que baixasse o tom em suas disputas com o Legislativo e o Judiciário. Em setembro, às vésperas de encerrar seu constrangedor mandato como presidente do STF, Dias Toffoli sacramentou o grande acordo nacional, declarando: “Nunca vi atitude de Bolsonaro contra democracia”.

O presidente fala um pouco menos. Os cargos para o Centrão são liberados. Em especial, ele parece estar entendendo que o mandato não é só dele, mas do conjunto de forças que permitiu que ele chegasse lá.

Mas nada nas políticas concretas do governo mudou. A pandemia prossegue descontrolada, e enquanto a prometida vacina – russa, chinesa ou inglesa – não vier, a única coisa que a freia é a diminuição do estoque de potenciais infectados. A devastação ambiental está no auge. Os indícios das práticas corruptas de Bolsonaro e de sua família não param de crescer. O boicote à educação e à ciência é permanente. Agressões grotescas aos direitos das mulheres, dos povos indígenas, da população negra, da comunidade LGBT, ocorrem todos os dias.

Mas parece que chegamos a uma nova “normalidade”. Mesmo os órgãos de imprensa hostilizados por Bolsonaro, um presidente que tem (como é evidente sobretudo no caso do Grupo Globo) trabalhado para miná-los financeiramente, cuidam em primeiro lugar de não prejudicar a “agenda positiva” do governo: privatizações, destruição do Estado por meio da reforma administrativa, precarização generalizada nas relações de trabalho.

A resistência ao governo Bolsonaro será protagonizada pela classe trabalhadora e demais grupos dominados. Setores insatisfeitos das classes dominantes podem dar apoio pontual aqui e ali – o apoio é tão pontual quanto são pontuais suas insatisfações. Atrelar a nossa estratégia à deles, subordinar a nossa agenda à deles, é o caminho certo para a derrota. A morte, desde o princípio anunciada, da “frente ampla” serve de lição.

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