Pensar Piauí

O texto profético de Nelson Rodrigues sobre Pelé três meses antes da Copa de 58

Entre aqueles que melhor resumiram Pelé, está Nelson Rodrigues

Foto: DivulgaçãoPelé
Pelé

O Rei do Futebol foi diagnosticado com câncer em setembro de 2021, ao fazer exames de rotina no Einstein. Na ocasião ele passou por cirurgia para retirada do tumor e voltou para casa depois de um mês. Desde então Pelé faz tratamento quimioterápico, tendo que voltar ao centro médico todo os meses para fazer exames periódicos de acompanhamento. Em 29 de novembro ele voltou ao Albert Einstein e está internado.

Na tarde do sábado (3), o Hospital Albert Einstein divulgou um novo boletim médico sobre o estado de saúde de Pelé. O comunicado informa que o ídolo apresentou boa resposta ao tratamento contra a infecção respiratória. "Pelé segue em tratamento e o estado de saúde continua estável. Tem tido boa resposta também aos cuidados na infecção respiratória, não apresentando nenhuma piora no quadro nas últimas 24 horas", diz o boletim.

O mundo está atento ao quadro de saúde de Pelé e acompanhando o que os médicos dizem. 

Pelé voltou a ser o assunto de muitas rodas de conversas e é destaque em toda a imprensa. 

O pensarpiauí traz um dos primeiros grandes textos sobre o craque do futebol, do cronista Nelson Rodrigues.

E a pena privilegiada de Nelson teve ares proféticos em 8 de março de 1958, a três meses do garoto de 17 anos eclodir na Copa do Mundo. Um reles America x Santos tornou-se caminho à coroação, possibilitada pelas palavras impressas na coluna do carioca na Manchete Esportiva. Classe em campo e no papel, que ajudam a sustentar essa aura do Rei. 

A realeza de Pelé, por Nelson Rodrigues

Manchete Esportiva, 8 de março de 1958

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — ”Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

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