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O grande Bob Dylan: 80 anos

Ontem o músico completou 80 anos de vida

Foto: DivulgaçãoBob Dylan
Bob Dylan

 

Por Julinho Bittencourt, cantor, compositor,  na Fórum 

Assim como todo garoto naqueles idos dos anos 70, ouvia rock e tudo o mais que pudesse produzir a maior quantidade de barulhos possíveis. Um dia, surgiu o Bob Dylan em nossas vidas e tudo mudou. Peguei o bonde andando. O que lembro bem foi do lançamento do álbum “Desire”, de 1976, que trazia a canção “Hurricane”.

A composição, feita em parceria com Jacques Levy, traz uma letra enorme que conta a história do boxeador negro Rubin “Hurricane” Carter, preso injustamente acusado de assassinato. No imaginário do menino de 15 anos soou um gongo. Havia vida inteligente, havia assunto de adultos, enfim, no rock.

A partir de então, foi um caso de amor irremediável que me conduziu para todos os álbuns anteriores e também os que foram lançados pelas décadas seguintes. Bob Dylan sempre esteve um passo à frente. Seus inúmeros álbuns exigem de nós um mínimo de esforço para compreender suas personas, sua profunda visão melancólica e desesperançada da América contemporânea, comparável apenas aos seus grandes escritores.

Tanto foi que acabou, ele próprio, um cantor pop, vencendo o cobiçado Prêmio Nobel de literatura, em 2016. Bob Dylan é incomparável. Escrevi na ocasião que, na sua seara – a canção popular – não há nada e nem ninguém que tenha descido ao inferno e ao céu das palavras com tamanha intensidade. Fazer uma lista de roqueiros e enfiá-lo no meio é prescindir da sua obra. É não ter a menor noção da diferença entre o entretenimento de Lennon e os Beatles, Stones, Hendrix e congêneres e a dimensão das suas inquietações e elaboração poética.

Confiná-lo, enfim, ao mainstream da indústria de entretenimento, com seu visual icônico é mergulhar às cegas nas armadilhas da indústria cultural. Dylan era sim – e ainda é – um astro pop. Um grande poeta que se serviu à mancheia das possibilidades que o negócio poderia lhe trazer para produzir uma coisa maior. Ninguém no meio tem a sua estatura. Ele é do meio por parte de cabelo, vestimentas, capas e outras malandragens. Quem quiser mergulhar na sua obra que se prepare para muito mais.

São raros os que conheceram de fato as várias personas que o artista construiu ao longo de sua vasta e produtiva carreira. Heróis que desenhava para si mesmo como num romance, que o faziam transformar tanto a voz poética quanto a de cantor. O velho gutural e solitário de “Time Out of Mind”, o jornalista que antecipou em muitos anos os blogueiros em “Desire”, o cristão fervoroso e repleto de detalhes e citações bíblicas de “Slow Train Coming”, enfim, os muitos Dylans dentro de um só que, assim como qualquer outro grande escritor, produziu uma obra com a dimensão do Prêmio Nobel.

Um sucesso de Dylan nas rádios tem sido cada vez mais raro na mesma medida em que uma obra prima sua é cada vez mais frequente. Não que uma coisa exclua a outra e vice e versa. Mas tem sido assim.

Celebrar os oitenta anos de Bob Dylan, que se completam nesta segunda-feira (24), no exato momento em que o planeta ameaça sucumbir à pandemia do coronavírus, nos remete aos seus primórdios. Ainda garoto, ele lançou “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”, em seu segundo álbum, “The Freewheelin’ Bob Dylan”, de 1963. Na canção, Dylan encarna o anjo que anuncia o fim dos tempos a partir da Crise dos Misseis, em Cuba, ocorrida no ano anterior, em plena Guerra Fria.

O horror do apocalipse em forma de revelação e a eterna reconstrução da humanidade, entremeada por todas as angústias da existência, alinhavam a obra de Bob Dylan em sua extensão, um dos autores mais imprescindíveis do nosso tempo.

Que os deuses do absurdo deem a Dylan mais oitenta anos, assim como nos têm reconstituído por todos esses tempos.

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