Pensar Piauí

O gordo e o magro na cultura sertaneja nordestina

No sertão o ser gordo tem um sentido diametralmente oposto ao que hoje é propalado pelos discursos de médicos, de nutricionistas, mesmo pela mídia

Foto: Divulgaçãoquadro 'Retirantes', de Candido Portinari
quadro "Retirantes", de Candido Portinari

 

Por Durval Muniz de Albuquerque Jr, no Diário do Nordeste 

Sempre que passo por esses verdadeiros aquários, cheios de pessoas fazendo exercícios físicos, que são as academias, me recordo de meus tempos de morada na zona rural do Cariri paraibano, a área mais árida do sertão desse estado (no que contrasta totalmente com o Cariri cearense, uma das áreas úmidas do sertão do Ceará), e de como o ser gordo e o ser magro possuíam sentidos totalmente distintos daqueles que, hoje, notadamente nas cidades e entre as classes médias e altas, se manifestam, por exemplo, na cultura do corpo, na estética e nas práticas fitness.

No sertão, uma área secularmente marcada pela fome, pela escassez de alimentos, pela penúria, notadamente, em períodos de ocorrência de prolongadas estiagens, o ser gordo tem um sentido diametralmente oposto ao que hoje é propalado pelos discursos de médicos, de nutricionistas, mesmo pela mídia, que veicula essa cultura do corpo magro, malhado, musculoso, através, inclusive, de programas que fornecem rotinas de exercícios para serem realizados pelos telespectadores, notadamente, pelas telespectadoras, nas salas de suas residências.

A verdadeira indústria que se desenvolveu em torno da cultura corporal da malhação (que não por coincidência se transformou em título de série televisiva voltada para o público adolescente) vem implantando outras formas de significar o estar ou o ser gordo ou magro. Numa área do país em que a magreza, por subnutrição, por causa daquilo que o sociólogo Josué de Castro nomeou de fome endêmica, o ser ou o estar magro não era/é associado a estar saudável, muito menos ao estar belo e atraente sexualmente. A magreza, desde o período colonial, era vista como uma marca distintiva da pobreza, daqueles que não podiam se alimentar bem. A elite senhorial, aqueles que tinham posses, eram opulentos não apenas de haveres mas também de carnes.

O gordo, como aborda Gilberto Freyre, era uma marca de classe, era um signo de distinção social. As senhoras, as matronas coloniais, talvez como um eco da própria estética corporal prevalecente nos períodos medieval e renascentista europeus, tinham na corpulência, um signo não apenas de superioridade social, mas também de feminilidade. Assim como na cultura sertaneja, o ser gorda estava associado a própria fertilidade, a capacidade de gerar descendentes saudáveis, de parir filhos que descem continuidade a família, missão fundamental das mulheres da aristocracia.

Tal como os cabelos compridos, grandes, a fartura de ancas, de seios, denotava um corpo feminino preparado para a maternidade e dotado de feminilidade e encantos do belo sexo. As dobrinhas, as formas roliças e rechonchudas, as curvas, eram associadas a feminilidade e consideradas atraentes e desejáveis do ponto de vista erótico e sexual. Um tornozelo e um pé roliço despertavam os encantos dos personagens masculinos dos romances do escritor cearense José de Alencar, o podólatra autor de A Pata da Gazela (1870).

No sertão dizer que alguém está magro está longe de ser um elogio. O ser magro está associado ao passar fome, ao passar necessidade e ao estar doente. Ao contrário do que ouvimos hoje no discurso médico, na cultura sertaneja o estar gordo é sinal de saúde, além de ser sinal de que a pessoa está prosperando economicamente.

O estar engordando tanto pode ser um sinal de melhoria na saúde, como pode se referir ao estar enriquecendo, ao estar ficando com os bolsos ou com as arcas gordas, ao estar ficando “baludo”, com muita bala na agulha (associação que dá o que pensar sobre as formas de enriquecimento nessas plagas, ou seja, à base da bala).

Engordar é um verbo usado para se referir às finanças, à situação financeira, a qualquer coisa que vai em aumento. O engordar tem, inequivocamente, na cultura sertaneja nordestina, um sentido positivo. O ficar gordo é visto positivamente, é incentivado, como um sinal de saúde e até de felicidade. É constante na literatura de cordel a associação entre o ficar triste, a melancolia, a depressão e o emagrecimento. A magreza remete não só para um estado de morbidez física, mas também para um estado de morbidez psíquica. O magro é tomado como uma pessoa triste, sorumbática, macambuzia, ao gordo é associada a alegria, ao riso, a capacidade de divertir a todos.

As festas, nessa região, giram em torno do ato de comer e do oferecer comida (gesto de muita consideração por alguém), sendo uma grande vergonha não ter nada para servir. O comer e, portanto, o próprio engordar está associado a alegria, ao festejo. O gordo humorista ou o gordo alegre é uma tônica dessa cultura, de onde saiu o gordo humorista mais famoso do Brasil, Jô Soares, filho do empresário paraibano Orlando Heitor Soares.

Muitas vezes ouvi as mulheres, tanto das camadas populares, como das elites rurais do sertão da Paraíba, elogiarem a gordura da vizinha, da comadre, da visita que chegava a sua casa. Nessas falas havia a clara associação, que hoje pode parecer estranha, dada essa cultura do fitness, entre o estar gorda e o estar bonita. Quando a visita chegava era recebida com frases como: “- nossa como você está bonita, gorda, corada, chega a pele está brilhando!”.

Quando alguém emagrecia, por outro lado, ao invés de ser motivo de contentamento, como vemos hoje em dia, notadamente nas grandes cidades da região, era motivo de preocupação, muitas vezes até de cochichos e expressões de desconfiança. Dificilmente se tocava no assunto, se falava abertamente sobre isso, pois incomodaria a outra pessoa e seria considerado um gesto de falta de educação.

O que não impedia que as pessoas mais bisbilhoteiras não se contivessem e perguntassem: “- você está magra ou magro, aconteceu alguma coisa? Você andou doente?”. Evidentemente não se ia perguntar se a pessoa estava passando fome, mas essa era a suspeita que logo se levantava assim que ela virava as costas, se se tratasse de pessoa pertencente as camadas populares. O magrém (palavra pejorativa que não por mera coincidência não tem equivalente para o estado de gordura) era/é visto com um misto de desconfiança e pena. A frase: “fulana ou fulano está tão magra ou magro”, era acompanhada por uma expressão de desolação e pronunciada num tom de lamento. Já quando se dizia ou se diz que se havia encontrado ou que se encontrou alguém e se afirmava ou se afirma que ela ou ele estava ou está gordo ou gorda, isso era e é dito com expressão de alegria, num tom quase de euforia. Não quedará nenhuma dúvida de que aquela pessoa se encontra bem física e emocionalmente, de que tudo vai bem em sua vida.

Tanto o ser gordo, como o ser magro estão associados ao ato de comer, ao fato de se ter comida ou não disponível, que são marcadores sociais de classe e de sucesso ou não na vida.

No Nordeste, como de resto no Brasil, a escassez ou a fartura de comida distingue as pessoas, os grupos sociais, as próprias regiões do país. No próprio Nordeste haveria uma geografia da fome, tal como desenhou Josué de Castro, a separar o sertão da Zona da Mata, o agreste do litoral, as cidades da zona rural, as cidades pequenas das grandes. Na Zona da Mata, a gordura está associada a dieta das comidas doces, das comidas ligadas à produção e à sociedade açucareiras.

Em seu livro Nordeste, Gilberto Freyre constrói poderosas imagens para falar desse espaço que estaria marcado pela prevalência do redondo, do gordo, seja fruto da fartura de comidas, para as elites dirigentes, seja pela opilação, pelo inchaço, pela tumefação provocada pelo uso excessivo da cachaça (subproduto da moagem da cana que era acessível a escravos e trabalhadores, ajudando-os a suportar a vida de exploração e sofrimento, o trabalho pesado, a vida que era apenas sobrevida), pela erisipela (no caso de pernas e pés), pelos vermes, pela impazinação com comidas bravas ( no caso da barriga, o que era comum também no sertão durante as secas, com a ingestão de cactos e outras plantas). Seu livro se organiza contrapondo o seu Nordeste, o Nordeste do gordo, o Nordeste aristocrático, que teria dado origem a civilização brasileira, ao Nordeste do magro, do seco, das figuras de El Greco (Nordeste que serão motivo da obra poética de seu primo e êmulo político, João Cabral de Melo Neto).

A gordura no sertão também está associada ao poder. O poderoso costuma ter as costas largas, costuma ser um homem de muita presença. Ter poder é estar ancho no mundo, é estar bem situado, assentado na vida. O ser mirrado, o ser seco, o ser magro como “espantalho de roça”, o ser desmilinguido, é não poder dar sombra a ninguém. Gente poderosa e corajosa é gente que tem toutiço, que tem um pescoço grosso e rígido, é gente que tem banha para queimar. Portanto, dizer que alguém está gordo, que está roliço, afirmar que fulano tem uma boa pança, que está luzindo de gordo, que está goooordo (com a extensão da pronúncia da letra o tentando representar o quanto gorda a pessoa está), não constitui uma ofensa ou uma falta de tato e educação, mas um extremado elogio.

Estar gordo ou magro é tão importante na vida sertaneja que essa é uma das primeiras informações que se dá ou que se pergunta sobre alguém. É comum ouvir uma pessoa dizer: “- encontrei fulana, ela está maaagra, parecendo um sibite (a ave cambacica)” ou “- eu vi sicrano, está tão gordo, bonito, rosado, esbanjando saúde, chega está de papada”. Ao se encontrar com outra pessoa essa também pode ser uma das primeiras observações a ser feitas: “Você engordou”, com o ar de aprovação ou “- Nossa como você está magro”, com um ar entre preocupado e de reprovação.

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