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Há 20 anos o SUS perdia um de seus pais: David Capistrano

Para marcar os 20 anos da morte de David Capistrano, o pensarpiaui reproduz artigo de outro grande médico, Adib Jatene

Foto: Carta MaiorDavid Capistrano
David Capistrano

Ontem, Hésio Cordeiro morreu e hoje completam-se 20 anos da morte de David Capistrano. Tanto um como o outro foram fundamentais para a criação do SUS. É a saúde pública sem seus defensores.

Tudo isso num momento em que, numa operação suspeita a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) suspende os testes em humanos de vacina contra o coronavírus e o fato é aplaudido pelo presidente da República: “Morte, invalidez e anomalia… Esta é a vacina que o Dória (sic) queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la (sic). O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha” - disse hoje o chefe do executivo brasildeiro numa rede social 

Para marcar os 20 anos da morte de David Capistrano, o pensarpiaui reproduz artigo de outro grande médico, Adib Jatene. Em 17 de janeiro de 2000 ele escreveu para a Folha de São Paulo um texto que diz mutito quem foi David Capistrano Filho:  

Um rebelde com causa

Adib Jatene, médico, ministro da Saúde 

Morreu David Capistrano Filho. No seu velório, na Assembléia Legislativa de São Paulo, encontrei uma legião dos seus amigos, emocionados e tristes pela perda. A mãe, com 80 anos, a mulher e os quatro filhos agasalhados pelo carinho que só a amizade sincera e o respeito pelo falecido transmitem.

Conheci o David em 1979, quando assumi a Secretaria de Saúde do Estado. Era um jovem médico sanitarista designado por Walter Leser, meu antecessor, diretor do distrito da Vila Prudente. David era alvo de feroz oposição das forças políticas que apoiavam o governo e que exigiam de mim a demissão do diretor.

Mandei verificar sua postura para saber se usava o cargo para proselitismo. Informaram-me que era um funcionário exemplar, enfrentando com seriedade as restrições de pessoal e de instalação e buscando conquistar benefícios para a população.

Resisti às pressões e o mantive, o que por pouco não me custou o cargo. Até de comunista fui chamado. Quando montamos a comissão que elaborou o Plano Metropolitano de Saúde, ele fazia parte do grupo. Durante os 36 meses como secretário, aprendi a respeitá-lo. Combativo, veemente e intelectualmente honesto. Lutava pelo que acreditava, a sua verdade, mas sabia aceitar a verdade dos outros. Acompanhei sua carreira como secretário de Saúde de Bauru e de Santos e ainda prefeito de Santos.

Durante todos esses anos, esteve na linha de frente das discussões sobre a reforma sanitária. Sua atuação na 8ª Conferência Nacional de Saúde, que serviu de base ao capítulo de saúde da Constituição, é reconhecida por todos. Lutou como poucos pela formulação e pela implantação do SUS.

Teve a coragem de distribuir seringas aos viciados, quando isso era considerado transgressão legal, e acoplar à distribuição um rigoroso programa educacional, visando, principalmente, os grupos de risco e retirando a cidade do primeiro lugar na prevalência da Aids. Implementou, entre tantas iniciativas, o atendimento domiciliar em Santos.

Voltei a encontrá-lo em 1997, quando ele já havia deixado a Prefeitura de Santos. Como todo homem honrado, saía precisando trabalhar para manter a família. Em 1996, ainda como ministro, implantamos em São Paulo, no distrito de Itaquera, em parceria com a Secretaria de Saúde e com o Hospital Santa Marcelina, os programas Agentes Comunitários e Saúde da Família, que no Estado figuraram como Projeto Qualis.

Posteriormente, já fora do ministério, nova parceria se delineava entre a Secretaria Estadual da Saúde e a Fundação Zerbini. Precisávamos de um coordenador. Busquei e consegui a participação não só entusiasmada, mas acima de tudo competente, do David. Com alguns colaboradores que ele trouxe e com o apoio da Fundação Zerbini, ele elaborou e implantou na Cachoeirinha, na zona norte, e em Sapopemba, na zona sudeste, dois módulos do Projeto Qualis. Não tenho receio em dizer que são modelo para áreas metropolitanas.

Com seu jeito peculiar e a certeza de quem conhece o rumo e tem claro o objetivo, atuou de forma convencional e não convencional. Resolvia problemas baseado no bom senso e na necessidade. Rompia obstáculos e antecipava soluções, o que, por várias vezes, criou conflitos com a burocracia da fundação, que não conseguia acompanhar seu ritmo ou entender os seus motivos. Agia com a pressa dos que entendem já ultrapassados em muito os prazos para oferecer à população carente e desassistida algo que ela tem direito.

Por inúmeras vezes acompanhei-o em visitas aos bairros e assisti à forma como transmitia entusiasmo aos agentes comunitários e aos membros das equipes de Saúde da Família. Aprendi a respeitá-lo cada vez mais. Via um idealista puro, atuando com pragmatismo e se alimentando dos resultados.

Sentia na pessoa do David que a recompensa do médico não se media por patrimônio conquistado ou por posição social, mas pela sensação de que ajudava pessoas que sofrem a se sentirem melhor. O auge de sua satisfação foi a alegria que demonstrou quando inaugurou a Casa do Parto de Sapopemba, em convênio com o Amparo Maternal, proposta sua, que lhe valeu ser chamado a colaborar com o ministério, interessado nessa proposta.

Já alquebrado pela doença, viajava frequentemente para ajudar a difundir e a implantar suas idéias. De certa feita, em Governador Valadares, quase foi vencido, tendo sido transportado em coma para a Unidade de Fígado do Hospital das Clínicas. Na ocasião, insisti para que reduzisse suas atividades, já sabendo que não teria sucesso.
O episódio de sua operação de transplante do fígado é impressionante. Não tendo entre os familiares quem lhe pudesse oferecer a doação e sem condições de aguardar um fígado de cadáver, eis que alguns amigos se dispuseram a doar parte do fígado. A escolha recaiu sobre outro David, o Rumel, que lhe ofereceu, em atitude de solidariedade suprema, a oportunidade de recuperação.

Depois da dificílima operação, conseguiu recuperar-se parcialmente. Mas sobrevieram as complicações que o vitimaram.

No seu velório, o José Rubem, seu grande amigo, referiu-se ao David como o rebelde com causa.

Na verdade foi um rebelde lutando incansavelmente contra a injustiça, executando até a exaustão o possível -e, às vezes, o impossível-, respeitado e amado pelos seus subordinados e amigos e aureolado pela pobreza honrada de quem tinha ocupado cargos importantes sem nunca ter se utilizado deles para qualquer benefício pessoal.

Perdemos o convívio do David, mas sua imagem há de perdurar como exemplo e poderoso estímulo a todos que acreditam que a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela pessoa humana e a eliminação das desigualdades são, sem dúvida, o bom combate.

David combateu esse combate. Venceu, como pudemos atestar no seu velório. Descanse em paz, com a certeza do dever de cidadão cumprido em sua maior dimensão.

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