Pensar Piauí

Elis Regina: um legado de amor e força pela música

Há exatos 40 anos, a Pimentinha gaúcha nos deixava, mas sua presença e sua voz nunca foram tão presentes para todas as gerações

Foto: DivulgaçãoElis Regina
Elis Regina

 

otempo - O Brasil acompanhou boquiaberto, maravilhado, o surgimento e a trajetória de Elis Regina, desde que ela apareceu, com aquele sorriso que era só dela e agitando os braços feito hélices de um helicóptero na transmissão da TV Excelsior, em 1965, aos 19 anos, durante o primeiro Festival da Música Popular Brasileira. Cantou “Arrastão” e saiu de lá como a melhor intérprete do concurso. Saiu de lá também para fazer história, que começou nas rádios de sua Porto Alegre ainda na infância.

O Brasil também acompanhou boquiaberto, porém entristecido e espantado, as notícias da manhã daquele 19 de janeiro de 1982: a morte de Elis Regina, aos 36 anos. Quatro décadas se passaram, mas o nome da cantora permanece forte, relevante, contemporâneo e sempre atual. De lá pra cá, Elis virou filme, minissérie, livro, documentário, musicais e vai entrar para as páginas dos quadrinhos. Os vídeos com suas músicas nas plataformas digitais somam quase 1 bilhão de visualizações.

Falar de Elis é falar de Brasil e de nossa música popular. Nessas quatro letras, nesse nome de pronúncia curta e musical, cabe uma obra imensa e uma voz que nunca se calou. Para celebrar Elis Regina, uma das maiores cantoras do século XX, O TEMPO passou a palavra para quem tem saudade, orgulho, admiração e respeito pela eterna Pimentinha, a menina que falava cantando.

Viagem transcendental 

João Marcelo Bôscoli, filho e produtor musical

“Falar da mamãe é sempre um prazer. É um hábito, como acordar e tomar banho. No meu dia a dia, me mandam com muita frequência pessoas no começo de carreira cantando Elis, crianças chamadas Elis por causa da minha mãe. Eu só não desmonto porque é algo que sinto todos os dias: não é uma saudade absurda só nesse dia de hoje, é uma saudade de todos os dias, mas já me acostumei e encaro essas efemérides com mais alegrias porque a Elis permanece vigente. Do ponto de vista musical e técnico, ela tem tudo: um timbre muito bonito, uma afinação fora do comum, divisão rítmica e uma interpretação fora de série. Elis cantando samba, rock, soul music, bossa nova… tudo é de uma competência absurda. Lembrando do que vi ao vivo e dos meus trabalhos nos álbuns dela, a sensação que fica é que ela vivia aquilo, não interpretava. Uma vez a Björk falou comigo: ‘Eu não sei como sua mãe conseguia ir emocionalmente onde ela ia. Eu não teria coragem de ir porque não sei se conseguiria voltar’. Essa viagem transcendental é demais, parecia mesmo que ela estava voltando de algum lugar. Era uma entrega emocional muito grande. Essa associação de inteligência e emoção é uma coisa rara. A Elis não envelheceu, nunca teve tempo de gravar um disco ruim. Tudo dela é muito contemporâneo. Essa é uma característica de uma grande obra de arte: ser a reportagem de seu tempo e, simultaneamente, algo que dialoga com a atemporalidade.”

Sempre presente

Maria Rita, filha e cantora

“Nesses 40 anos 'sem' Elis - entre aspas, né? - porque minha mãe continua presente fortemente na vida das pessoas, nas redes sociais, cada vez mais até, a nova geração descobrindo minha mãe, a maneira dela pensar, o seu repertório, não são bem 40 anos sem ela. São 40 anos com ela de um jeitinho especial. Todas as homenagens que ela recebe me deixam muito orgulhosa. O sentimento mais forte que me vem é de orgulho pelo legado dela se manter tão vivo em um país acostumado a não ter memória. Ter minha mãe tão forte e recebendo tantas homenagens, gerando conversas e abrindo discussões sobre diversos assuntos, porque ela era tão à frente do tempo dela e ao mesmo tempo atemporal, me enche de orgulho.”

Nascer do sol em BH

Tutti Maravilha, jornalista, radialista e amigo  

“Conheci a Elis em 1972, quando eu era produtor de shows em Belo Horizonte, e nunca mais nos desgarramos. Conversávamos por cartas, ela adorava escrever. Elis era muito festeira, adorava fazer festas de aniversário e réveillon; fumava muito e tomava muito café. Em meados da década de 70, morei um ano em São Paulo com ela, com o César (Camargo Mariano, marido de Elis entre 1973 e 1981) e o Rogério, irmão dela. Foi uma experiência maravilhosa. Ela gostava de cozinhar, fazia lula e frutos do mar. A baixinha era danada! Ela me dava muitas dicas, dizia o que gostava ou não, educou meus ouvidos para a música. A baixinha era muito generosa, adorava lançar novos artistas. A última vez que nos vimos foi em dezembro de 1981, quando ela veio para BH com o show “Trem Azul”, no Palácio das Artes. Depois da estreia, fomos para o quarto dela no Othon Palace. João, Pedro e Maria Rita dormiam na cama dela, a babá na cama ao lado. Ficamos na sala conversando e tomando cerveja até amanhecer o dia. Da janela, vimos o sol nascer, o Parque Municipal logo ali embaixo… Parecia que estávamos nos despedindo. A morte dela foi um golpe muito duro. Eu não acreditei. Não conseguia falar, só chorava. Em 2022, o ‘Bazar Maravilha’ completa 35 anos, e há 35 anos eu toco Elis todos os dias. Falo que é para abençoar o programa e ofereço sempre para ouvintes e amigos aniversariantes. É o único programa de rádio do Brasil que toca Elis todos os dias.”

Elis, sobrenome “Coragem”

Andreia Horta, atriz e intérprete de Elis Regina na cinebiografia “Elis”, de 2016

Após fazer o filme, o que ficou de mais marcante e especial da vida e da obra dessa mulher tão talentosa e forte foi a coragem em ser o que se é. Elis era intensa, profunda e com uma qualidade técnica impressionante. Quase toda a sua obra se deu no período da ditadura militar e ainda assim ela deixou essa obra colossal. Era uma cidadã indignada, que se posicionava contra a estupidez e o absurdo. Sobre interpretar Elis, o mais fácil foi quando, depois de muito trabalho, eu pude dançar com ela em cena; o mais difícil foi no início, começar a trazer a personagem para o meu corpo.”

Nossa referência maior

Júlio Maria, jornalista e autor da biografia de Elis, “Nada Será Como Antes”

“O discurso da Elis com relação às mulheres, à política cultural, com ela à frente de associações de compositores e defendendo o músico, o cara que toca, como nunca antes um artista tinha feito; com relação a direitos humanos e direitos civis, indo defender a Rita Lee na cadeia; com relação a mulher e filhos, aceitação social de uma mulher com filhos e trabalhando, o que ela fez com três filhos, levando três filhos para o trabalho, tudo isso é muito atual e, sobretudo, com relação à liberdade de expressão, que Elis sempre defendeu de forma muito incisiva dentro de um Brasil sufocado por uma ditadura. Não estamos em uma ditadura hoje, mas temos resquícios, então você imagina o quanto o discurso da Elis é atualizado todos os dias. Falando de música, Elis colocou o limite de uma cantora nas alturas e tornou muito complicada a vida de cantoras no Brasil. Você atingir a excelência no canto brasileiro a partir de Elis Regina se tornou um desafio sobre-humano para muitas cantoras. Acho que ela também aumentou o nível da composição, porque os compositores pensavam em Elis, queriam ser gravados por Elis Regina, logo tinham que fazer algo muito acima do que já haviam feito, isso vai elevando a composição brasileira nos anos 70 a níveis estratosféricos. Como cantora, também é uma mulher muito atual e presente, porque é a referência, e as referências são vivas, não morrem. Como os Estados Unidos têm a Ella Fitzgerald, o Brasil tem a Elis Regina. Com todo respeito a todas as outras grandes cantoras, a nossa referência maior é Elis Regina.”

Lembranças de uma casa no campo

Pedro Camargo Mariano, filho e cantor e compositor

Convivi muito pouco com ela, muito menos do que eu gostaria. Se não for a minha maior frustração, está entre elas. Eu tinha quase 7 anos quando ela morreu. Minhas lembranças são fragmentos, flashes. Tenho lembranças de churrascos, de coisas triviais, mas talvez uma das recordações mais completas, em que os frames estão mais ou menos juntos, é de uma ida dela à horta que a gente tinha em nossa casa, na serra da Cantareira, onde ela realmente teve sua casa no campo. Ela colocou um tantinho de sal na nossa mão, minha e da Maria Rita, pra gente ir caminhando e pegando tomatinho-cereja e cenoura. A gente ia fazendo uma farrinha ali. Quando mordo uma cenoura crua ou um tomate-cereja, me lembro desse instante. Sobre a artista, falo com tranquilidade: Elis é parte importante para todas as pessoas que querem entender o que é boa música, emoção, musicalidade, suingue, potência e afinação. Em paralelo a isso, a discografia dela traz uma fotografia sociopolítica do Brasil, e a Elis era verdadeira: o que a incomodava ela verbalizava, cantava. A verdade sempre foi o artigo mais importante dela. Era muita verdade e intensidade junto. Quando você vê que tudo isso veio só numa pessoa, uma mulher de um metro e meio, que enfrentou a ditadura, que conseguiu se tornar o ícone no qual se transformou, se isso não é uma força da natureza feita para durar para sempre, eu não sei mais o que é. Todo artista quer que você corra o relógio 20, 30, 40 anos e tudo que ele fez ainda sirva, seja autêntico, atual. A Elis conseguiu.”

Inspiração para outras mulheres

Chris Fuscaldo, escritora e doutora em literatura

“Elis Regina nunca se privou de nada do que quis fazer e cantar e, com isso, assumiu diversos riscos, ao mesmo tempo em que inspirou muitas outras mulheres. Há uma entrevista clássica em que perguntam à Elis por que ela resolveu gravar rock se, anos antes, ela liderou uma passeata contra a guitarra elétrica. E ela simplesmente respondeu: ‘Eu mudei de ideia’. E, a cada mudança de ideia, Elis se mostrava mais versátil e mais talentosa. Sem dúvida, como intérprete, ela dava autoria às composições de grandes compositores. Não à toa, foi por causa de sua gravação de “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida” que Belchior ficou conhecido e teve seu álbum “Alucinação” incluído entre as pérolas da música brasileira, tudo isso em 1976. Elis se apropriava das canções. Ela era uma cantora empoderada e certamente empoderou muitas mulheres a continuarem tomando as rédeas da própria carreira, coisa que foi tão difícil conquistar – e tantas nem conseguiram – ao longo da história. No nosso país, as mulheres são menos de 8% dos arrecadadores de direitos autorais, segundo dados de 2020 do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). As cantoras sempre foram tratadas como musas, mulheres que brilham na frente do palco. Muitas vezes, é isso que os músicos esperam de uma mulher, e não exatamente uma voz ativa. Mulheres que mudaram essa perspectiva foram Maysa e Dolores Duran, para falar das compositoras, e, entre as cantoras, Aracy de Almeida e, claro, Elis Regina. Elis ainda rompeu barreiras misturando gêneros e se reinventando a cada álbum.”

Celebrando Elis

Como parte das homenagens a Elis no ano em que se completam exatas quatro décadas da morte dela, dois documentários serão lançados: “Elis Pelo Mundo” (Santa Rita Filmes), produzido por Marcelo Braga e com três capítulos exibidos em mais de 55 países pela HBO; e “Elis & Tom”, dirigido por Roberto de Oliveira, com exibição no canal Arte 1.

Discos importantes, como “Falso Brilhante” (1976), serão remasterizados e remixados, e um especial da TV Cultura, que vai ao ar em 17 de março, aniversário de Elis, também está no pacote de tributos à cantora.

Outra novidade é que a gaúcha vai protagonizar as páginas de um gibi, idealizado e produzido pelo quadrinista Gustavo Duarte, da Marvel. O espetáculo “Elis, a Musical”, com direção de Dennis Carvalho e roteiro de Nelson Motta, também será remontado neste ano para celebrar a Pimentinha. No Rio, no Teatro Clara Nunes, estreou no início de janeiro o musical “Pimentinha: Elis Regina Para Crianças”.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS