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Eles temem é um futuro de sociedades solidárias, com gente esclarecida e liberta da escravidão, servidão ou proletaridade

Eles temem é um futuro de sociedades solidárias, com gente esclarecida e liberta da escravidão, servidão ou proletaridade

Foto: GoogleUtopia
Utopia

 Por Nilson Lage, no Tijolaço Mudou muito o Brasil, e com isso os fantasmas do sótão não se conformam. Lembro-me das meninas assustadas, com sua pobre chita de domingo, chegando à rodoviária trazidas da miséria da roça para os quartos de empregada, onde dividiam espaço com os trastes da família, comiam o que sobrava das refeições dos amos e eram sempre vigiadas por madames ciumentas. A faxineira semanal aqui de casa completa este ano o segundo grau e a formação como auxiliar de enfermagem na escola pública. A pequena empresária que a contrata, e também faz faxina para nós de vez em quando, graduou-se em administração com especialização em gestão de pessoas. Dei-lhe, porque quis ler, livros meus, sobre jornalismo. Orgulho-me de ter participado dessa mudança de parâmetros e me desespera vê-la ameaçada. A conquista da excelência nacional em educação demora, em geral, muito tempo — e o Brasil começou tarde. Porque não havia culturas sofisticadas e estados nacionais a destruir, como os impérios Inca, Maia e Asteca, os europeus não fundaram, aqui, universidades. Por dois séculos e meio, o ensino conduzido pelos jesuítas criou uma língua geral, o tupi-guarani, e ensaiou modelo civilizatório próprio, cuja vitrina foram as missões dos Sete Povos. Expulsos os padres pelas decadentes coroas ibéricas, em meados do Século XVIII, restou vazio lentamente preenchido, no Vice-reinado e no Império pelas primeiras iniciativas de ensino público e escolas pioneiras de Engenharia, Direito e Medicina. A Velha República, ao fortalecer as oligarquias e promover o racismo, consagrou o princípio de que a educação popular é presente “do governo ao povo”, como está, ou esteve, gravado na fachada do prédio de uma escola de ensino básico, no Largo do Machado, Rio de Janeiro, inagurada nos anos 1920 — dádiva, não conquista. As primeiras universidades no Brasil foram fundadas com motivação episódica: a Universidade do Brasil, atual UFRJ, em 1920, para outorgar título de doutor honoris causa a monarca visitante, porque “caía bem”; a Universidade de São Paulo, USP, com o propósito de combater as ideias “subversivas” do desenvolvimentismo e do trabalhismo que orientavam o governo de Getúlio Vargas. Ambas se consolidaram nos anos 30 e 40, com o aporte de sábios estrangeiros. Uma boa política de educação deve ser universal — abranger e tentar integrar as áreas de conhecimento — e desenvolver-se simultaneamente em todos os níveis, aberta a gente de todas classes sociais. Trata-se de investimento gigantesco, no prazo curto de que dispusemos e dispomos,, cujos efeitos são a abertura dos horizontes individuais e a imposição da racionalidade sobre valores atávicos. Isso é bom do ponto de vistas das pessoas, mas contribui, principalmente, para viabilizar formas democráticas e eficientes de gestão nos planos político e econômico. Após experiência no meio acadêmico que começou na década de 1950, quando iniciei meu curso — inacabado — de Medicina, e não se interrompeu desde então, em áreas diversas, tenho clara noção de como é sofrida a criação de quadros docentes de alto nível e a maturação dos núcleos de pesquisa; mas também como isso desborda para o ensino básico e como se reflete virtuosamente. em penosos embates, no ambiente cultural do país. No Brasil, a expansão da rede pública de excelência, que se acelerou ultimamente, vem sendo espremida por universal onda retrógrada que soma ganância dos ricos e remediados, frustração dos incompetentes e desespero dos fundamentalistas de pensamento mágico. O móvel dessa maré, para quem atenta ao avanço das tecnologias e seus efeitos, é o temor de um futuro de sociedades solidárias, povoadas por gente esclarecida e liberta da escravidão, servidão ou proletaridade, formas históricas de expressão brutal da luta de classes. Quem atiçou as feras estúpidas que cercam as escolas acredita, mesmo, que nelas se equaciona a fórmula de comunidades distensas, sustentadas pelo trabalho de máquinas inteligentes que não rendem mais valia. Caberá aos humanos, então, poupar matérias primas e esforços hoje esbanjados; otimizar as condições de sobrevivência da espécie e o refinamento das culturas. Combatem, por antecipação, a utopia, para eles, assustadora.

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