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E quem foi Esperança Garcia?

E quem foi Esperança Garcia?

A Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Piauí - OAB-PI, anuncia que na noite desta terça-feira, 05, Esperança Garcia receberá, oficialmente, o título simbólico de primeira mulher advogada do Piauí em cerimônia organizada pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil. Amanhã, 06, é Dia Estadual da Consciência Negra em homenagem a ela.
Esperança Garcia foi uma mulher negra escravizada que viveu na região de Oeiras, na Fazenda de Algodões, cerca de 300 km de Teresina. Sua história se destaca por sua coragem em ter denunciado os maus tratos sofridos por ela, suas companheiras e filhos, por meio de uma carta ao governador da Capitania de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. A carta escrita por ela data de 06 de setembro de 1770, quando ela tinha apenas 19 anos e dizia:
“Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.
De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia”
E quem foi de fato esta mulher para 247 anos depois a Ordem resolver homenageá-la?
Um estudo realizado pela Universidade Federal de Pernambuco em parceria com o Ministério da Cultura no ano de 2014/2015 conta um pouco da sua história. A imagem que se tem dela é apenas de uma estátua que está no Centro de Artesanato de Teresina. Provavelmente ela nascera em Algodões, e aprendera e ler e escrever com os jesuítas, expulsos do Brasil por Marques de Pombal, quando ela tinha apenas 9 anos. Aos 16 anos, teve o primeiro filho.
Conforme o estudo, que tem como referência pesquisas feitas pelo antropólogo Luís Mott e o historiador Solimar Oliveira Lima, a fazenda Algodões contava com 26 escravizados, possuía 74 cavalos e 3 mil cabeças de gado, casa de moradia, currais, uma capela “e seus pertences” e 16 escravizados que moravam em senzalas. As moradias dos escravizados se constituíam, na verdade, em casebres ou ranchos, alguns sem paredes.
Em 1776 o inspetor da Fazenda, juntamente com os criadores das fazendas da inspeção Piauí, foram acusados de abusarem sexualmente das trabalhadoras, separando-as dos maridos e castigando-as quando se negavam a manter relações sexuais.
Outro documento, de autor desconhecido e não datado, que acompanhava a carta de Esperança Garcia (original está em Portugal e cópia no Arquivo Público do Piauí), esclarece alguns pontos sobre esta situação, reforçando o relato de violência sofrida por ela:
“Conta que dou a V. Sa. da residência de Nazaré, que é procurador o Capitão Antonio Vieira do Couto: (ele) tirou uma escrava chamada Esperança, casada, da fazenda de Algodões e não tem concedido tempo algum para a dita ir fazer vida com seu marido, vendo apertada com vários castigos tem fugido por várias vezes e o dito Capitão tem posto tão tímida a dita em forma uma quinta feira deu tanta bordoada com um pau e com ela no chão e depois jurou que havia de amarrar dita escrava se arretirou com dois filhos, um nos braços, de 7 meses e outro de 3 anos; até o presente não tem tido notícia dela e tem feito umas correias para castigar e diz que veio para ensinar os ditos escravos. Tem mostrado como os escravos tem experimentado que tem clamado contra o dito procurador até que foi ouvido da intercessão de V. Sa. veio uma portaria até a fazenda da Serrinha e como tem um padrinho que orou para odito Procurador não teve (realização) do seu mau instinto, em forma que aperta os ditos escravos (que) não têm descanso. Todas as noites trabalham sem descanso algum, sendo preto velho e se fora moço, tudo podia a mocidade suportar. Como no sustento do dito, muito mal que não come farinha que a fazenda faz, porque serve para ajuntar com a que o dito procurador faz para seu negócio, do que pedindo licença o intercessor de V. Sa., não quis consentir em forma alguma do que contra a ordem, dizendo que era dos seus escravos. Que estorva os ditos escravos para o seu serviço em socar mamona, em desmanchar mandioca e outro serviço. Até tirou algumas escravas para fiar algodão e diz, como no ano passado, que era para(trabalharem) na fazenda e fez redes para seu negócio e não tem dado cumprimento algum na sua obrigação, não tem corrigido as ditas fazendas faltando a sua obrigação, tendo o criador da fazenda Tranqueira certas rezes em particular (e) querendo dar esta conta a V. Sa. Como pai e Sr. põe os olhos de piedade em ver estas lástimas porque não tem quem fale por estes mais que a misericórdia de V. Sa. abaixo de Deus, pois os ditos escravos não tem outro jazigo senão o amparo de V. Sa.”
Acredita-se que Esperança Garcia se refugiou com a proteção de parceiros na mata próxima a Algodões, uma que vez que durante um tempo não se teve “notícia dela”. Passados oito anos da denúncia e fuga (1778), encontram menções ao nome dela em uma relação de trabalhadores de Algodões (Anexo I). Dentre os escravizados, havia um casal Ignácio e Esperança. Ele, um negro de Angola, de 57 anos; ela, crioula, com 27 anos. Na relação aparecem também sete crianças. "Esperança Garcia se perpetuou na memória do povo negro piauiense, inspirando movimentos sociais e gerando forças para implementação de mudanças e conquistas importantes. Estas forças vêm especialmente do poder de identificação entre sua pessoa e história de vida, ou o que dela se conhece, e o perfil do povo negro, minorias, remanescentes de comunidades tradicionais que lutam cotidianamente pela afirmação de seus direitos." Considerando que a ideia de identidade e memória não é um conceito estável

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