Pensar Piauí

"Cultura de classe média alta afeta profundamente o Direito", diz professor

Profissionais do Direito passaram a ter uma cultura de classe média alta

Foto: DivulgaçãoAlysson Mascaro
Alysson Mascaro

 

Conjur - O Direito teve papel decisivo nos principais acontecimentos políticos do Brasil nos últimos tempos — na "lava jato", no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, na exclusão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva do pleito de 2018 e na consequente eleição de Jair Bolsonaro. Para Alysson Leandro Mascaro, professor de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo, o Direito, nesse processo, foi instrumentalizado para cumprir interesses econômicos da burguesia, dos detentores do capital. Tanto que Judiciário, Ministério Público e demais órgãos jurídicos não se opuseram a governos de direita, como de Michel Temer e Bolsonaro, com a mesma intensidade que agiram contra os do PT.

De acordo com Mascaro, o Judiciário pode proferir decisões que contrariem interesses pontuais de classe, como as que permitiram a união estável homoafetiva e o aborto de fetos anencéfalos, pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, a Justiça não pode se insurgir contra o capital em temas políticos e econômicos. Se fizer isso, "o capital destrói o Judiciário, destrói o próprio Estado, mediante golpes, perseguições militares, inclusive perseguições nos meios empresariais de comunicação de massa, que destroem reputações", aponta o professor.

Ele dá um exemplo: "Há 80 anos o Brasil tem uma Justiça do Trabalho; e há 80 anos essa Justiça do Trabalho está na berlinda, sendo perseguida, sendo posta em termos de que deve ser extinta porque ela vai contra o capital".

Mascaro afirma que a classe jurídica, antigamente, se comportava como um estamento. Ou seja, tinha uma cultura própria — bacharelesca, falsamente intelectual, mas que ainda se preocupava com esse aspecto. O cenário mudou e os profissionais do Direito passaram a ter uma cultura de classe média alta, não diferente da de médicos, engenheiros ou diretores de multinacionais. Com isso, Judiciário, MP e outros órgãos jurídicos começaram a assumir, de forma mais patente, a ideologista capitalista. O resultado são cortes de direitos sociais e prisão de pobres.

Alysson Mascaro é autor de diversos livros, como "Crise e golpe", "Estado e forma política" (ambos publicados pela Boitempo Editorial), "Filosofia do Direito" e "Introdução ao estudo do Direito" (ambos publicados pela GEN-Atlas).

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Qual foi o papel do Direito no impeachment de Dilma Rousseff e na posterior eleição de Jair Bolsonaro?
Alysson Mascaro — O Direito teve papel decisivo, mas não pelas razões tradicionais que louvam as instituições, os juristas ou mesmo a importância do controle democrático da sociedade. O Direito, nos últimos tempos, teve uma proeminência enorme na ação política do país, dado que mediante instituições jurídicas como a operação "lava jato" ocorreu a transformação política do Brasil. No impeachment de Dilma e na chegada da extrema direita ao poder, houve um papel jurídico proeminente. É claro, não era o único papel, mas o Direito sempre participou desse movimento.

ConJur — O senhor afirma, em "Crise e golpe", que o Direito deriva do modo de produção capitalista. Como isso ocorre?
Alysson Mascaro — Existem leituras que desconectam o Direito da realidade estrutural da sociabilidade. Então o Direito vem como se fosse um plano institucional, criado pela vontade do legislador. Nós diríamos então que pessoas são sujeitos de Direito porque o legislador assim quis fazer. É o que eu chamo nos meus livros de Direito juspositivista, criado por um órgão. E, claro, existe uma esfera de normas jurídicas na sociedade, ela é uma esfera imediata da nossa compreensão social. Mas o Direito está em uma esfera ainda mais profunda do que esta, apenas a casca do Direito é normativa. No final das contas, a estruturação da sociabilidade forja isso que se pode chamar de forma jurídica, de forma de subjetividade jurídica. Em uma sociedade na qual as coisas se dão enquanto mercadoria, que é a sociedade capitalista, o consumidor da mercadoria não tem esses bens pela força, pela mão imediata da sua milícia privada. O intercâmbio de mercadorias e propriedades privadas faz com que ambos, quem está comprando e quem está vendendo, passem a ser sujeitos iguais perante a transação. Então, essa tese, descoberta no século 19 por Marx, mas mais desenvolvida, no século 20, por Pachukanis e tantos outros teóricos e críticos, é que o Direito existe para muito além da sua própria normatividade. Isso quer dizer que existe uma esfera jurídica calcada na organização do modo de produção. Por isso, pode-se dizer até que a forma jurídica é uma espécie de correlata ou derivada das formas do capitalismo. Ou seja, para usar o Direito para além do capitalismo seria impossível, dado que essas formas surgem exatamente para a reprodução do capital.

ConJur — O senhor afirma, a partir de Pachukanis, que a forma do Direito é, necessariamente, uma forma social capitalista. E diz que "não se pode, então, vislumbrar, pelo campo do Direito, um potencial transformador nem superador do capitalismo". Sendo assim, qual é o papel, por exemplo, dos direitos e garantias das fundamentais da Constituição de 1988, dos direitos trabalhistas, das normas ambientais, da Lei Maria da Penha e da criminalização do racismo no Direito brasileiro?
Alysson Mascaro — Todas essas conquistas sociais não conseguem se sustentar apenas no campo das instituições normativas. O exemplo talvez mais candente disso ocorreu há pouco nos EUA, no que tange aos direitos reprodutivos da mulher, ao aborto (a revogação, pela Suprema Corte dos EUA, do precedente Roe v. Wade, que legalizava a interrupção da gestação em todo o país). Quando nós colocamos essas conquistas civilizatórias no plano de garantias institucionais, que não são lastreadas em uma transformação das condições estruturais que geram os problemas para os quais essa juridicidade dá alguma solução, nós estamos colocando-as nas mãos daquelas formas sociais próprias do capital. Em circunstâncias de disputas ideológicas, disputas de classes, nas quais interessa cortar direitos como, por exemplo, os direitos reprodutivos da mulher nos EUA ou os direitos trabalhistas no Brasil, a força do capital é mais determinante do que a declaração normativa. Por isso rasgam Constituições, revogam normas.

Nós efetivamente apoiamos as dimensões da proteção do meio ambiente, dos trabalhadores, das conquistas sociais mais amplas. Não podemos simplesmente dizer que essas garantias são fundadas no nível daquilo que eu chamo de "imperialismo político-jurídico". Porque esse imperialismo tem pés de barro. Então passa um vento, mudam as correlações de força na sociedade, e tudo aquilo que um dia foram conquistas, amanhã passa a ser um retrocesso. Isso é um exemplo do Brasil com a CLT.

Isso é um exemplo do Brasil com a CLT. Não há garantia jurídica de que os direitos trabalhistas prossigam. Pelo contrário, a luta de classes destroça as instituições favoráveis às classes trabalhadoras. E as normas nunca foram excessivamente protetivas à classe trabalhadora. A CLT sempre foi uma espécie de concessão para não se deixar fazer uma transformação estrutural da sociedade. É preciso uma materialidade das lutas sociais, dos grupos, de gênero, antirracistas, de classe, para que isso que em algum momento se exprime por meio jurídico tenha uma concretude tal que não permita que, posteriormente, o próprio Direito rompa com essas mesmas garantias.

ConJur — Sendo, como o senhor diz, uma forma social capitalista, como poderia ser o Direito em uma sociedade socialista?
Alysson Mascaro — A luta pela superação do capitalismo é tamanha que nós sequer conseguimos vislumbrar como seria uma dimensão na qual os trabalhadores seriam diretamente proprietários dos meios de produção. Hoje, tudo é organizado a partir da propriedade privada dos meios de produção. E isso faz com que a maioria da humanidade trabalhe para a minoria. Certamente, em uma sociedade na qual a riqueza possa ser acessível a todos, a dinâmica de regulação seria outra, não organizada pela subjetividade jurídica. Eu chamo de "subjetividade jurídica" essa dimensão de relação social que diz "é meu por direito, ninguém toma de mim". Então nós precisaremos ter produção de outra forma, superior, nós teremos de articular a produção e a destruição a partir de eventos do interesse comum, segundo as capacidades de cada qual e de acordo com as necessidades de cada qual.

Então seriam outros modelos regulatórios que não esses envolvidos na pena, na comissão penal do tempo aos crimes ou das garantias do capital contra a classe trabalhadora. Teremos uma sociabilidade que não terá sequer rastro dessa que temos hoje. Temos multas, opressões, dominações. E muitas dessas opressões e dominações continuariam, e as lutas devem prosseguir em uma tentativa de transformação de vários âmbitos da sociabilidade. No entanto, a transformação do modo de produção tira da frente um problema específico, que é o de toda a organização do mundo ser feita para que a maioria que nada tem respeite e viva em torno da propriedade privada dos meios de produção de uma ínfima minoria da sociedade.

ConJur — O senhor afirma que o Judiciário pode proferir decisões progressistas em temas de costumes, como em pautas relacionadas a homossexuais, mulheres, racismo, entre outras, mas não o faz em temas políticos e econômicos. Por que isso ocorre?
Alysson Mascaro — O Estado tem uma autonomia relativa, o que discuto no livro "Estado e forma política". Mas o Direito, quando está no âmbito interno das instituições do Estado, também tem um grau relativo de autonomia que permite que o Judiciário eventualmente tome decisões contra alguns interesses de grupo ou mesmo contra alguns parciais e pontuais interesses de classe. O que acontece é que essas decisões tanto vão quanto voltam. Volta a citar o exemplo dos EUA. Há 50 anos, o Judiciário tomou uma decisão progressista (legalizando o aborto em todo o país no caso Roe v. Wade); 50 anos depois, o mesmo Judiciário toma uma decisão reacionária (revogando o precedente firmado em Roe v. Wade). Essa autonomia relativa, que é tanto para um lado quanto para o outro, não consegue, no entanto, se afirmar no âmbito que eu chamaria de "âmago material" da própria juridicidade. O Poder Judiciário, de qualquer país do mundo, não pode se insurgir contra o capital, porque se fizer isso, o capital destrói o Judiciário, destrói o próprio Estado, mediante golpes, perseguições militares, inclusive perseguições nos meios empresariais de comunicação de massa, que destroem reputações. São poucos os exemplos nos quais o Direito vai contra o capital; via de regra, é o capital que destrói o Direito.

Há 80 anos o Brasil tem uma Justiça do Trabalho; e há 80 anos essa Justiça do Trabalho está na berlinda, sendo perseguida, sendo posta em termos de que deve ser extinta porque ela vai contra o capital. Ainda que vá contra o capital, é muito parcialmente, nas rebarbas, apenas em questões básicas, como, por exemplo, o combate ao trabalho análogo à escravidão e a concessão de horas extras. O capital nunca foi contra a Justiça Civil e a Justiça Penal. E a toda hora é contra a Justiça do Trabalho. Tanto que qualquer dimensão jurídica que busque se aproximar, em algum grau, do combate à exploração econômica ou da distribuição de riqueza é profundamente combatida. Mais que isso, é destruída, para não dizer que ela sequer consegue se esboçar dentro da sociedade capitalista.

ConJur — Como o Judiciário deixou de funcionar como um estamento superior, oligárquico, e passou a agir dentro da lógica neoliberal?
Alysson Mascaro — Essa tese, que eu desenvolvo em "Crise e golpe", é que nós tivemos dois grandes momentos para o Judiciário no Brasil — e quando falo em "Judiciário" aqui não estou me referindo apenas à magistratura, mas a todos os estamentos profissionais jurídicos, como Ministério Público, procuradorias, Defensoria Pública e mesmo a advocacia. Antigamente, o Judiciário se comportava como estamento. Era voltado a si próprio, tinha uma cultura própria, uma linguagem própria, as vestimentas dos juristas eram muito específicas. É isso o que identifica um estamento. E tinha suas virtudes e seus defeitos. As virtudes de ser estamento consistem no fato de que há a possibilidade de construção de uma cultura própria. O defeito é exatamente a sua virtude — essa cultura própria pode ser pedante, elitista, tender a ser aristocrática. É algo bastante isolado do contexto social.

No pós-fordismo (após o choque do petróleo de 1973), no neoliberalismo, que é o capitalismo das últimas décadas, houve uma mudança na estrutura social do Judiciário. O Judiciário ainda continua com alguns ares estamentais, ele em geral briga, batendo o pé, para ter seus privilégios remuneratórios, seus direitos trabalhistas, então tem uma pressão que lembra muito a do estamento. No entanto, nos últimos 40, 50 anos, o Judiciário foi tomando cada vez mais a face de uma classe econômica. Nesse sentido, o Judiciário foi se diluindo na classe econômica correspondente ao seu padrão remuneratório. O magistrado do passado tinha uma cultura bacharelesca, uma cultura das lombadas dos livros, uma estética de possuir uma estante de não sei quantos metros apenas para mostrar erudição. Mas ele não lia aquelas obras. Ou, se lia, eram obras repetitivas em relação às outras. Essa estética de uma certa falsa cultura, de um certo brilho no retórico e pouco dada à concretude intelectual vai sendo deixada de lado. E vai se firmando uma espécie de cultura judiciária muito típica de outras profissões com o mesmo padrão remuneratório. O juiz deixa de lado a cultura da toga e passa a ter uma cultura de classe média alta. Então a ideologia do magistrado, do promotor, do advogado, passa a ser a mesma ideologia do médico, do engenheiro, do dentista, do profissional de gerência ou de direção de multinacionais. Essa dinâmica não é mais informada pela cultura estamental interna, é informada por uma espécie de ideologia geral, que se modula para essa classe. Esse Judiciário não só deixa de ser estamento como passa a se afirmar como classe econômica. Passa a ter uma admiração ideológica, valorativa, política e estética das pessoas que também auferem a mesma renda e possuem as mesmas condições.

No nível ideológico, essas pessoas são formadas por espaços como algumas revistas semanais, alguns jornais, alguns canais de redes sociais, uma espécie de cultura que é típica da classe, mas não do estamento. A classe média alta, ou a classe burguesa, tem um horizonte cultural mais orientado aos EUA do que a qualquer outra sociedade. Isso acarreta em profissionais jurídicos o louvor do Direito estadunidense, o louvor da common law em face da civil law, que é o modelo jurídico do Brasil e da Europa continental. Louvam o modelo estadunidense da delação premiada, por exemplo.

Isso afeta profundamente o Direito. Como essa visão de classe média alta, na sociedade capitalista, tradicionalmente tem pendores ideológicos de direita — ela é contra direitos e interesses da classe trabalhadora —, o Judiciário passa a assumir, de modo mais patente, essa ideologia, mas sem os esconderijos que existiam até então da mistura com o estamento. Obviamente, o Judiciário sempre foi ideologicamente do poder social dominante e do capital. No entanto, ele tinha uma espécie de filtro do estamento — a linguagem, as expectativas, essa noção de ter uma biblioteca onde se pode ter milhares de livros. E tudo isso é deixado de lado, porque a expectativa de um jurista na sociedade contemporânea é ter dinheiro suficiente para uma estratégia de consumo como é a de seus pares — ou seja, gastar em um clube, em um restaurante caro ou algo do tipo. É simplesmente a ostentação, o consumo.

Esses magistrados, promotores e advogados se comportam nas redes sociais como qualquer outro profissional de qualquer área. Eles tendem a uma certa leitura política de mundo que considera que os trabalhadores têm direitos demais. Portanto, eles olham os trabalhadores a partir de sua experiência de patrões de empregadas domésticas, de seguranças, de motoristas. Eles nunca pensam a partir do ângulo da classe trabalhadora assalariada de maioria da população.

ConJur — O senhor afirma que os concursos para ingresso na magistratura, MP e demais carreiras jurídicas não exigem a experiência ou sabedoria jurídica, e, sim, fazem uma "medição a partir da absorção de conhecimento decorativa e bastante tecnicista", o que exige que os candidatos tenham que se alienar da vida produtiva e cultural por anos para passar nas provas. Qual o impacto desse sistema na atuação do Judiciário, MP e demais órgãos jurídicos?
Alysson Mascaro — Esse tema trata diretamente do modelo que eu chamo de "subjetivação dos juízes". Como se constitui a subjetividade dos juízes? Como eles são interpelados socialmente? Nesse modelo para as profissões jurídicas mais bem remuneradas, como magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública, procuradorias, a exigência de concursos não olha para o nível de experiência do profissional, o nível de exposição a problemas concretos, a experiências, às mais variadas desgraças sociais e mazelas. O nível de aferição de provas de concursos alcança apenas a dimensão da decora de normas, jurisprudência e institutos jurídicos. Então trata-se de um saber bastante tecnicista, bastante fechado, bastante analítico nos seus próprios termos, e que evita, via de regra, problematizações intelectuais e voos intelectuais mais altos. E dá ênfase para estratégias de conhecimento que são mais próximas do ato de decorar, de memorizar. Para obter essa dimensão de aprofundamento, de memorizações ou de saberes muito focados na técnica e ser aprovados, é necessário que os candidatos, via de regra, se isolem ou tenham um tempo de preparação suficiente pouco afeito a dinâmicas, como, por exemplo, a da exploração de trabalho. Por causa disso, a população que precisa trabalhar, na prática, está alijada dessa maioria dos aprovados em concursos.

Então os concursos passam a ser, não exclusivamente, mas majoritariamente, espaços partilhados por aqueles que tiveram condições de poder parar alguns anos e decorar essas instituições normativas, jurisprudenciais e doutrinárias. Por causa disso, o mundo jurídico e judiciário se torna cada vez mais elitista e cada vez mais segregador. Porque são os filhos da classe média, são os filhos de ricos que conseguem ter um tempo de vida sem trabalhar, ter acesso a cursinhos e a materiais para o estudo. São as classes médias e ricas que formam seus filhos para que sejam juristas. O impacto ideológico disso é extraordinário, na medida em que o Judiciário tem um olhar relativamente externo para a classe trabalhadora, a partir de suas experiências. Essa é uma das razões pelas quais o Judiciário pertence a uma bolha que não é só estamental, mas econômica. O Judiciário é reabastecido com indivíduos da classe média e da classe alta, da classe capitalista. É uma relação de retroalimentação, que fortalece uma ordem mais favorável aos interesses, valores e dinâmicas da classe capitalista.

ConJur — O senhor afirma que muitos ingressantes na magistratura, MP e demais carreiras do Direito têm "apenas o saber jurídico como guia de horizonte de vida". Como essa visão tecnocrática impacta a aplicação do Direito?
Alysson Mascaro — Impacta na medida em que o mundo da experiência social de vida passa a ser filtrado a partir de categorias, bastante escandalizadas, de normas, jurisprudência e doutrina. O jurista não tem um acesso imediato às contradições sociais, ele tem sempre um acesso mediatizado, mediante aqui os institutos jurídicos. Isso faz com que a dimensão da resposta jurídica seja quase autorreferente. O problema social é trazido ao jurista mediante categorias jurídicas; e mediante categorias jurídicas o jurista resolve os problemas sociais. Ou seja, ocorre uma espécie de despolitização de padrões sociais mais estruturantes. Tampouco há um olhar para as lutas de classes, de grupos, de minorias. Essa dinâmica faz com que os profissionais do Direito vivam em uma espécie de circuito fechado. Um circuito fechado no qual o capital forma a ideologia do jurista, que, por sua vez, ratifica o capital.

ConJur — O senhor afirma que o Direito é usado como remédio contra a corrupção. Como isso se dá?
Alysson Mascaro — O Direito, nessa leitura moralista, da burguesia, das classes médias altas, é vendido como uma panaceia contra a corrupção. A moralidade pública, o combate a eventuais ilegalidades dos agentes públicos, esse é o horizonte que os juristas enxergam como sendo um horizonte de transformação social. Por isso, o jurista quase nunca se ocupa de contradições sociais, em resolver contradições que demandam reconhecer que é preciso tomar lado, o do explorado contra o explorador, do injustiçado contra o que comete injustiça. O jurista se ocupa então de instrumentações jurídicas cujo horizonte ideológico sempre ande em defesa da ordem capitalista. Tal horizonte busca garantir que o capital esteja nas mãos do proprietário privado, que o contrato seja cumprido. São dimensões que, ao final, referendam a ordem vigente e impedem a transformação social. Esse horizonte de arcabouços ideológicos do jurista estabelece, mais uma vez, um circuito fechado. O jurista não sai de onde ele tem o seu próprio eixo ideológico de formação.

ConJur — O senhor afirma, em "Crise e golpe", que o "golpe (contra Dilma) é determinado economicamente e sobredeterminado juridicamente". Isso também se aplica à exclusão de Lula das eleições de 2018, o que levou à eleição de Jair Bolsonaro? Poderia explicar melhor essa afirmação?
Alysson Mascaro — O filósofo Louis Althusser propõe que a sociedade capitalista é sempre determinada pelo modo de produção. Então quem determina as condições sociais é a classe burguesa. É a própria estruturação das formas do capital. Propriedade privada, todas as terras têm dono, os bens comuns são privatizados. Essa é a determinação, e o controle social está nas mãos da classe dominante dessa determinação. No entanto, além dessa determinação em última instância, há também imediatitudes. É aquilo que o próprio Althusser chama de "sobredeterminações". A determinação é do capital, mas o capital, para os fins da dinâmica política, por exemplo, delegou ao Poder Judiciário resolver em favor do capital. Então o Judiciário combate posições políticas de esquerda, legitima e não combate posições políticas de direita.

Assim, questões como as que se viram no governo Dilma Rousseff servem juridicamente para seu impeachment. Mas questões havidas no governo Temer não levaram ao impeachment dele. E questões havidas no atual governo sequer conseguiram abrir um processo de impeachment. Então é óbvio que há uma instrumentação do Direito a partir de interesses muito específicos. Daí a minha tese de que a determinação é sempre da burguesia, do capital. No entanto, a sobredeterminação é um espaço do imediato. Esse imediato pode ser do Direito, dos meios de comunicação em massa, dos aparatos ideológicos do Estado ou dos militares — por exemplo, no golpe de 1964. Portanto, a sobredeterminação atende a uma materialidade de interesses da determinação econômica.

ConJur — O senhor afirma que o Judiciário não atua tão fortemente contra governos de direita. O presidente Jair Bolsonaro tem colocado o Supremo Tribunal Federal como talvez o seu maior inimigo. Isso por causa de algumas decisões que contrariaram interesses do governo, como as que estabeleceram que estados e municípios têm autonomia para impor medidas de combate à epidemia de Covid--19, a anulação de normas ambientais e a investigação de aliados do governo no inquérito das fake news, além da recente condenação do deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ). O Judiciário não está se opondo a um governo de direita, no caso, o de Bolsonaro?
Alysson Mascaro — Basta imaginar se todas as ações, declarações e omissões do atual governo do Brasil fossem feitas por um governo de esquerda. Qual seria o impacto disso na sociedade, na burguesia, nos meios de comunicação de massa e nas instituições jurídicas? O impacto seria totalmente distinto. Embora haja algumas reações do Judiciário, elas não ocorrem da mesma forma e intensidade que ocorreriam se o governo fosse progressista ou de esquerda. Nos anos 2020 não há nada parecido com o clamor brasileiro do início dos anos 2010.

ConJur — Em "Estado e forma política", o senhor propõe que institutos como o da legalidade sejam tomados a partir da conformação entre a forma política estatal e a forma de subjetividade jurídica, do ponto em que estas derivam da forma-mercadoria. Poderia explicar melhor essa proposta?
Alysson Mascaro — Essa proposta avança para além de uma visão tradicional, que imagina que o Direito criou o Estado, e o Estado criou o Direito. Hans Kelsen, por exemplo, é um campeão dessa leitura tradicional. Essa leitura tradicional propõe que o Estado é aquilo que o Direito disser que é. Então, quando normas jurídicas da Constituição dizem que o Estado tem três poderes, o Estado passa a ter três poderes, porque o Direito criou três poderes do Estado. Ao mesmo tempo, o Direito é o que o Estado cria. Porque são elementos de uma assembleia constituinte, deputados ou senadores que fazem as normas que criam o Direito.

Eu proponho uma leitura mais avançada e mais concreta desses termos. A forma de relação entre os sujeitos de direito, a forma pela qual eles são iguais — embora, na prática, sejam desiguais —, essa forma de subjetividade jurídica advém da exploração do trabalho assalariado. Alguns na sociedade detêm os meios de produção. A maioria não detém. Para que a minoria explore a maioria, a maioria vende força de trabalho, e essa forma de venda é o contrato. Então ambos têm, na relação de um com o outro, uma materialidade na qual se comportam como iguais são presumidos como iguais, mas eles são totalmente desiguais. É o capitalismo. Essa relação pela qual pessoas distintas podem vender e podem se obrigar a partir da sua autonomia da vontade é o que eu chamo de núcleo da forma de subjetividade jurídica. Esse núcleo não vem do Estado, esse núcleo vem da própria materialidade das relações econômicas. É o fato de que um tem capital, e o resto não tem, que faz com que o resto venda a sua força de trabalho para esse que tem o capital. Essa dimensão faz entender que a forma de subjetividade jurídica não foi criada para o Estado. Ela foi derivada das relações econômicas do capital.

Mas o Estado não surge porque alguém quis criá-lo. Ele surge enquanto espaço e instituição política para garantir o capital do capitalista. Na Idade Média não havia Estado. O senhor feudal garantia seu governo. Com o capitalismo, como há uma pluralidade de burgueses, nenhum deles garante o capital dele e dos outros. É um terceiro. Esse terceiro é o Estado. O Estado advém das relações do capital e a subjetividade também advém das relações do capital.

Mas não é que o Estado criou o Direito, ou que o Direito criou o Estado. Ambos derivaram das fórmulas básicas e determinantes do capitalismo. O que ocorre é que, como os dois surgem da mesma forma nuclear, que é a forma mercadoria, a forma valor, as instituições do capitalismo, o Estado tende a conformar o Direito, e o Direito tende a conformar o Estado. Essa é uma tese minha. O que vem a ser isso? O Estado já existe, ele já garante o capital. E a forma de subjetividade jurídica também já existe. Então os trabalhadores capitalistas já se comportam negocialmente, vendendo e comprando força de trabalho. Nesse momento, o Estado buscará normatizar as subjetividades jurídicas, dizendo: "Esse que faz acordo com outro só pode fazê-lo se for maior de idade. Se for menor de idade está proibido de fazê-lo. E se vender força de trabalho ao capitalista, não pode vendê-lo por menos de mil reais, porque isso é o que se chamará salário mínimo". É a tentativa de dar um contorno a uma forma social já existente. Então é outra forma social, a estatal, que tenta contornar a forma de subjetividade jurídica já existente, tenta conformar aquilo que já está formado. Bem como o Direito tenta conformar o Estado que já está formado. Ele está garantindo o capital, então ele tem aparato militar para garantir a propriedade privada do capitalista. Mas aí diz o Direito: "No entanto, esse aparato tem que ser distribuído mediante um aparato imediato da garantia do dia a dia do burguês, que é a polícia, em um aparato que defenda o Estado em face de outro Estado, que seriam as Forças Armadas". É uma tentativa de juridicizar o próprio Estado. Mas não é o Direito que criou o Estado. Ele já existe enquanto aparato armado de garantia do capital, senão o capital não existiria. Mas depois se tenta juridicizar isso.

Então a ideia de conformação busca compreender que não é o Direito que cria o Estado, nem o Estado cria o Direito. A relação que se dá entre ambos é de uma espécie de contorno recíproco. Esse contorno nunca é totalmente igual. O Estado pode buscar contornar o Direito dando mais garantias, cortando garantias. A mesma coisa o Direito com o Estado. Mas no final das contas, a materialidade dessas duas formas advém da materialidade da relação econômica do capital. Por isso, em última instância, Estado é uma forma derivada do capital, e Direito é uma forma derivada do capital.

ConJur — Como a epidemia de Covid-19 impactou o Direito e o Estado?
Alysson Mascaro — Eu escrevi um pequeno livro chamado "Crise e pandemia", que foi publicado pela Boitempo Editorial. Nessa obra, eu insisti que as calamidades da pandemia poderiam mobilizar a sociedade para dinâmicas de aproximação social. Milhares de pessoas morreram, milhões de pessoas passam fome, perderam o emprego, perderam as condições de vida. No entanto, as fórmulas do capital são tão determinantes que, via de regra, explicariam o flagelo da pandemia a partir da ideologia do capital, e não do próprio flagelo. Então, em face da miséria desse flagelo, escutaríamos da burguesia clamores como, por exemplo, de empreendedorismo: "Está mal? Você deve então buscar melhorar a sua vida trabalhando mais e tentando se superar". Ou seja, há um flagelo horrível, mas não se viu o processo a partir do qual fosse possível expropriar exploradores da sociedade. Não se viu processos jurídicos de combate às facetas das mais horrendas da pandemia. Houve algumas tentativas, algumas foram até exitosas em questões pontuais. Por exemplo, alguns setores do Judiciário buscaram garantir vacinação e políticas públicas na área da saúde.

Mas não se viu um processo de reacomodação da estrutura social, como, por exemplo, o de tornar a saúde efetivamente pública. Não houve medidas suficientes para dar condições financeiras básicas às classes pobres, exploradas. O processo jurídico seguiu quase que o mesmo padrão de sempre, ressalvadas valiosas exceções. E continuou na defesa da ordem e do Estado. Continuou servindo como uma garantia da reprodução do capital, prendendo pobres e cortando direitos sociais.

Nós desperdiçamos esse momento de sensibilização social para a luta e não conseguimos virar o jogo. O resultado é que a sociedade, que já sofria muito, sofre hoje ainda mais.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS