Pensar Piauí

Caso Daniel Alves reacende debate sobre cultura do estupro no futebol

Após o jogador Daniel Alves ser preso por estupro, especialistas explicam como a cultura do estupro é perpetuada no meio futebolístico

Foto: DivulgaçãoEnvolvidos em casos de estupros
Envolvidos em casos de estupros

 

Metrópoles - Preso desde o dia 20 de janeiro, o jogador de futebol Daniel Alves foi acusado de estupro por uma jovem espanhola. O caso, no entanto, não é o primeiro que vem à público envolvendo atletas. Daniel, porém, é um dos raros esportistas que foi encarcerado pela prática de crime sexual.

Segundo levantamento realizado pelo jornal Folha de S.Paulo, entre os anos de 2019 a 2021, foram registrados 240 boletins de ocorrência de crimes contra a mulher cometidos por atletas no estado de São Paulo. A maioria, jogadores de futebol. Outros grandes nomes também foram condenados e acusados do crime.

O mais recente caso foi do atacante Robinho. O atleta foi acusado e condenado a nove anos de prisão pela participação em um estupro coletivo de uma mulher albanesa, em 2013, na Itália.

Em 2020, o jogador teve conversas reveladas pela polícia italiana, no qual tirava sarro da situação da vítima:

“Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu”, escreveu o jogador em uma das conversas via aplicativo de mensagens.

Sociedade com traços machistas

De acordo com a advogada especialista em direito penal Jessica Marques, ainda há muita dificuldade, por parte dos homens, de entender do que se trata o estupro. “Por incrível que pareça, ainda é complicado estruturar na cabeça das pessoas o que é o estupro, principalmente quando falamos daquelas sociedades que têm uma cultura machista, geridas por um sistema de patriarcado”, pontua.

Para a especialista do Kolbe Advogados Associados, os locais que se pautam por esses princípios “têm uma visão restrita e delimitada do que é o estupro”. “Esses atos de violência sexual são vistos como atos comuns e do cotidiano, como se fossem uma cantada e não são”, pontua.

“Quando entramos em um ambiente predominantemente masculino, como clubes de futebol, existe esse problema de unirem uma única ideia e acreditarem que determinado ato é lícito e não cometimento de um crime, quando na verdade é”, explica.

Segundo a Lei nº 12.015, de 2009, estupro é “ter conjunção carnal [relação sexual] ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima.”

Além disso, o código penal brasileiro prevê que, mesmo que a vítima esteja inconsciente por vontade própria, não existe o discernimento necessário para que ela consinta ou entenda a situação — o que serve para uma pessoa alcoolizada e/ou drogada, ou até mesmo dormindo.

A cultura do estupro no futebol

As mulheres demoraram a serem inseridas no cenário futebolístico, meio majoritariamente masculino. Criado em meados do século 19, na Inglaterra, o esporte era jogado e assistido por homens. Após mais de dois séculos da tentativa de inclusão e ocupação delas nos mais variados espaços, ainda há uma recusa delas no futebol.

Levantamento realizado pelo Kantar Ibope revelou que as mulheres representam apenas 44% dos fãs do esporte no país. Ainda que exista uma crescente em relação ao interesse e participação delas no futebol, elas ainda são excluídas das lideranças e espaços de visibilidade relacionadas à prática esportiva.

“Quando se tem esse ambiente do futebol sem uma representação feminina na alta liderança, nos times e nem na cobertura esportiva, isso também afeta nas condutas dessas pessoas”, explica Marina Ganzarolli, advogada e presidente do Me Too Brasil.

“Esse ambiente passa a naturalizar, por exemplo, condutas de coação ou de constrangimento das mulheres ou de seus corpos — situações que não aconteceriam se fosse um ambiente mais diverso ou mais inclusivo”, salienta Ganzarolli.

A especialista pontua que é possível observar que, por muitos anos, a figura do jogador “malandro e festeiro”, que vai para a balada, “pega” um monte de mulheres e joga no dia seguinte, imperou por muitos anos, mas esse cenário tem mudado recentemente.

“Mas todo o ambiente, categoria ou mercado que é extremamente masculino, como nas indústrias pesadas e nas organizações militares, por exemplo, em que vemos uma desigualdade do poder e possui ausência de representatividade, há uma naturalização de condutas que não são aceitáveis”, explica.

Intimidação da vítima e subnotificação dos casos

Tais atitudes podem explicar como jogadores de futebol voltam a exercer a profissão ainda quando foram acusados e condenados de praticarem crimes hediondos. Em um dos exemplos, o ex-jogador Cuca, que atualmente treina o Atlético-MG, foi condenado por estupro de vulnerável em 1987, na Suíça, e nunca cumpriu sua pena.

Na época, Cuca atuava pelo Grêmio e foi acusado de estuprar, junto a outros três jogadores, uma menina de 13 anos. Os atletas alegaram que a garota “parecia ter 18 anos”. Após a denúncia, os atletas foram detidos e depois liberados, graças a uma negociação feita pelo Itamaraty que pediu que os atletas respondessem em liberdade em sua terra natal.

Dois anos depois, Cuca foi condenado a 15 meses de prisão, mas nunca cumpriu a pena, que prescreveu em 2004. Apesar da situação, o crime cometido pelo jogador não impediu sua ascensão profissional no Brasil. Mesmo após a condenação, o ex-jogador passou por outros oito clubes brasileiros e um espanhol.

Para a especialista do Me Too Brasil, tais fatores favorecem para que as vítimas desses criminosos sejam intimidadas e desistam da denúncia. “A naturalização de violências tão graves quanto o estupro e o feminicídio, leva muitas vítimas a não confiarem no sistema”, pontua.

Vale ressaltar que oito em cada 10 vítimas de estupro não prosseguem com a denúncia. Para muitas, a vergonha e o medo do julgamento, principalmente quando o acusado é uma celebridade, são empecilhos que atrapalham na denúncia dos crimes de estupro — fatores que contribuem para a subnotificação dos casos.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS