Pensar Piauí

Carlos Said é notícia nos Estados Unidos

Jornalista norte-americano faz reportagem com o Magro de Aço como tema

Foto: ReproduçãoCarlos Said
Carlos Said

George J. Tanber é jornalista, com cerca de 74 anos de idade, aposentado, mas que trabalhou nos maiores jornais dos Estados Unidos, sendo correspondente internacional destes periódicos. Cobriu várias guerras importantes. Hoje tem uma produtora e um blog no qual foi publicada a matéria a seguir sobre Carlos Said.

Gustavo Said, filho de Carlos, e professor da Universidade Federal do Piauí, conheceu Tanber no Michigan, em abril de 2023, quando tinha ido a Nova Iorque proferir uma palestra numa Universidade daquela cidade. Em Michigan, Tanber disse a Gustavo que em outubro de 2023 estaria no Uruguai. O piauiense, então,  o convidou para estender a viagem até a capital do Piauí. Convite aceito, o jornalista americado esteve em Teresina e entre palestras e oficinas conheceu Carlos Said 

Carta do Brasil

Por George J. Tanber é editor do theroadboomer.com com sede em Toledo, Ohio

Aos 92 anos, o lendário 'Magro de Aço' do futebol continua vivo

TERESINA, Brasil – Quando você conhece Carlos Said pela primeira vez, você fica impressionado com a voz dele – ou falta dela. Mais de sete décadas atrás do microfone em milhares de jogos de futebol danificou suas cordas vocais. Ele soa como o substituto do Poderoso Chefão.

No entanto, seus canos enfraquecidos não diminuem o homem que é uma das figuras mais queridas nesta cidade de 1,2 milhão de habitantes no nordeste brasileiro. Pelo contrário, ele possui um nível de energia e entusiasmo que desmentem seus 92 anos.

Estamos sentados no pátio de sua modesta casa no centro da cidade, onde mora há 50 anos. [Embora sejamos primas – nossas bisavós eram irmãs – nunca nos conhecemos até hoje.] O bairro, antes residencial, agora é um bairro comercial. Resta uma única casa – a de Carlos Said. Apesar dos protestos da família, ele se recusou a se mudar. Essa teimosia, firmemente enraizada no DNA do homem, frustrou seus filhos, amigos e colegas ao longo dos anos. Mas também é uma razão fundamental para seu sucesso - e sobrevivência.

Um homem menor teria sido enterrado há muito tempo.

Ao nos aprofundarmos na história de Carlos Said, uma coisa ficou clara: é difícil discernir entre o que é fato e o que foi consideravelmente embelezado.

O próprio Carlos Said é o primeiro a admitir que há alguma sombra entre o que é real e o que não é.

"Tem o Carlos Said, o homem. E depois há o mito", diz, quase caprichoso na entrega. "Depois de todos esses anos, às vezes não tenho certeza de qual é qual."

E tem o seguinte: em um país onde figuras conhecidas do esporte costumam ser conhecidas por um único nome – como Pelé –, Carlos Said sempre passa por dois.

Futebol em primeiro lugar

O pai de Carlos Said, Salomão, imigrou do Líbano para o Brasil em circunstâncias incomuns. Abraham Said [Sy-eed] temia que seu filho mais velho fosse recrutado para o exército turco durante a Primeira Guerra Mundial. Assim, viajou com o filho para Teresina, ficou uma semana e retornou ao Líbano, deixando Salomão à própria sorte.

Como muitos imigrantes libaneses aqui naqueles dias, Salomão tornou-se um mascate. Casou-se com uma libanesa e teve oito filhos, sendo o sexto Carlos Said.

O conflito entre pai e filho começou cedo. Carlos Said descobriu o futebol, o esporte nacional, e estava nas ruas dia e noite com seus amigos jogando o jogo que amavam. Quando ele se mudou para a adolescência, seu pai – possuindo a mentalidade de um imigrante trabalhador – estava farto.

Carlos Said recorda: "Ele disse-me: 'Parem de jogar. Leve a sério sua vida'".

Às vezes, o cinto do pai dava o que falar. Mas Carlos Said, sempre teimoso, brincou. E desenvolveu um plano. Lembrou-se de ouvir a Copa do Mundo no rádio em 1938 e ficou hipnotizado pelo locutor. Apesar de ter apenas 7 anos na época, a experiência ficou com ele e ele acabou achando que poderia de alguma forma combinar futebol e rádio como carreira.

Não demorou muito.

Aos 14 anos, ele convenceu o dono de um sistema de som que estava conectado por cabo a todas as praças da cidade a permitir que ele anunciasse placares de jogos de futebol e reportagens. [Na época, as rádios não existiam em Teresina.]

Carlos Said sorri amplamente com a lembrança de seu sucesso inicial. "No início, eles me disseram: 'Ninguém está interessado em notícias de futebol'. Mas continuei pressionando e finalmente eles cederam. Eles me deram cinco minutos para cada transmissão."

Aos 15 anos, ingressou em um clube de futebol amador chamado River. Ele foi informado por seus companheiros mais experientes que ele seria o goleiro, uma posição de pressão que ninguém mais queria. Ele tinha 5 pés, 8 centímetros de altura e pesava cerca de 125 quilos. Mas ele tinha as pernas de uma girafa e braços igualmente longos. Carlos Said foi um jogador natural a manter bolas fora da rede.

"Percebi", diz ele, "que tinha um dom".

A equipe foi um enorme sucesso. Em suas 18 temporadas com o River, terminando em 1963, a equipe ganhou sete campeonatos da liga. Pergunto ao Carlos qual era o seu salário naqueles anos.

"Sem dinheiro!", diz ele, com os braços esvoaçantes como os de um maestro. "Esses dias foram gloriosos. Os melhores tempos. Praticar o esporte que eu amava. Ganhador. Era tudo uma questão de amor ao jogo."

Estou impressionado com o nível de energia do homem. A temperatura neste dia está chegando a 100. A umidade combinando tem minha camisa encharcada de suor. Carlos Said, vestindo uma camiseta branca de futebol, shorts marrons e sandálias, é tão seco quanto um dia ensolarado de primavera nas montanhas. Percebo que todas as janelas da casa térrea estão abertas.

"Sem ar condicionado?" Pergunto.

Carlos disse: "Não preciso disso".

Em 1948, quando Carlos Said tinha 17 anos, foi inaugurada a primeira estação da cidade, a Rádio Difusora. Ele foi contratado para entregar reportagens esportivas curtas. Dois anos depois, estava no microfone do primeiro jogo de futebol transmitido em Teresina. Permaneceu na Difusora até 1962, quando foi contratado na Rádio Pioneira, uma nova empresa apoiada pela igreja católica local. Carlos Said foi nomeado diretor de esportes e notícias. Apesar do prestígio dos cargos, sua remuneração era minúscula. O pai ficou chateado.

Para apaziguar Salomão – temporariamente – Carlos Said matriculou-se na faculdade de Direito da universidade local. Escolheu a advocacia, não porque quisesse exercer, mas porque era o único curso oferecido na época.

Formou-se em 1956. No ano seguinte, seu pai se mudou com a família para São Paulo, 1.650 quilômetros ao sul, onde havia mais oportunidades. Carlos Said, então com 26 anos, recusou-se a juntar-se a eles, surpreendendo o pai. Ele se lembra da última conversa.

"Meu pai me disse: 'Você não vai colocar comida na mesa se estiver envolvido com futebol'. Eu falei para ele: 'Pai, vou fazer meu trabalho e um dia você vai ver que eu consegui sustentar a minha família'".

O acidente

Como se precisasse, a partida da família aumentou a motivação de Carlos Said.

Ele lembra: "Eu me sentia triste, mas tinha que aceitar a realidade de estar sozinho e seguir em frente com a minha vida".

Em pouco tempo, casou-se com Rochelane Fortes, constituiu família, voltou à escola para se formar em história e foi contratado por vários jornais locais para fazer reportagens sobre futebol e outros esportes – além de suas funções de transmissão de rádio.

Em 1964, aos 33 anos, alcançou um nível de fama que fez de Carlos Said um nome conhecido em quase todas as casas, não só em Teresina, mas em todo o estado do Piauí. Mas, como muitas vezes acontece na vida, em um único momento tudo virou de cabeça para baixo. No dia 2 de março daquele ano, quando dirigia a van da Rádio Pioneira para cobrir um grave acidente, ele mesmo se envolveu em um. Tão críticos foram seus ferimentos que ele recebeu os últimos ritos depois que os médicos disseram que havia poucas chances de que ele pudesse ser salvo. Seus fãs fizeram vigília do lado de fora do hospital e de sua casa, supondo que ele tivesse morrido. Espalhou-se a notícia de que Carlos Said, apesar de gravemente ferido, tinha de alguma forma registado um relatório ao vivo do local do acidente, durante o qual disse: "Acabei de sofrer um acidente a caminho de relatar um acidente. Estou quase morto. Mas a Pioneira não para!"

Refletindo, Carlos Said diz não ter memória do acidente ou do suposto relato. Mas é claro quanto ao resultado: "Foi aí que começou a lenda de Carlos Said".

Ele sobreviveu, mas permaneceu internado por um ano. Os fãs que compareceram para visitá-lo ficaram horrorizados ao ver seu corpo quebrado. Um deles disse, alto o suficiente para que outros ouvissem: "Se esse homem andar novamente, ele será o Magro de Aço".

Caminhada ele fez. A lenda cresceu. E o apelido dado a ele pelo torcedor desconhecido pegou.

De sua cama de hospital no quarto 76, Carlos Said abriu um escritório. Um de seus jornais entregou uma máquina de escrever. Ele batia 33 linhas por dia para uma coluna chamada 33 Linhas. A Rádio Pioneira montou-o com equipamento de radiodifusão. Ele acompanhou eventos de futebol pelo rádio e registrou reportagens ao vivo. Como se não bastasse, escreveu um livro sobre a história do futebol no Piauí. Seus amigos de futebol se aglomeraram em seu quarto para conversar sobre o assunto. Certa vez, no meio de um jogo importante, houve uma disputa entre os árbitros por uma regra. O jogo foi interrompido. Foi feita uma chamada ao hospital: Carlos Said foi convidado a intervir. Com um conhecimento enciclopédico das regras do jogo, resolveu a questão e o jogo foi retomado.

Quando finalmente saiu mancando do hospital – sua perna direita dois centímetros mais curta que a esquerda – Carlos Said sabia que seus dias de jogador de futebol haviam acabado. Mas sua carreira, assim como sua persona pública em seu estado natal, disparou para a estratosfera.

Os anos de glória

Quando os heróis retornam dos mortos, eles são tratados com um nível de admiração e respeito que os meros mortais não conseguem entender. Em todos os lugares que frequentava, Carlos Said tinha um público bajulador esperando. Apesar de gostar da atenção, o que ele realmente queria era voltar à sua vida normal. Eventualmente, ele o fez.

Mas o que era normal para alguns era tudo menos para Carlos Said. Dava aulas de história pela manhã. Suas tardes eram passadas na Rádio Pioneira e escrevendo para vários jornais. Depois do trabalho, ele encontrou seus muitos amigos para jantar e se divertir em um cabaré local – uma tradição brasileira na época. Chegou tarde da noite em casa. Rochelane estava em alta. Seus cinco filhos – duas meninas e três meninos – estavam dormindo. As manhãs de domingo eram para a família. Nas tardes de domingo, transmitia partidas de futebol com seu sempre presente parceiro Didimo de Castro.

Os anos passaram. A fama de Carlos Said cresceu. A questão homem x mito também continuou. Um dia, em uma partida fora de casa, a torcida do time da casa se envolveu com a torcida do clube de Teresina, que estava consideravelmente em menor número. A briga se espalhou do lado de fora do estádio e estava prestes a se tornar violenta. De repente, uma figura solitária emergiu da multidão de Teresina. Carlos Said, descendo da cabine de transmissão, assumiu uma postura de luta e, supostamente, disse: "Meu nome é Carlos Said. Eu sou o Magro de Aço. Você vai ter que passar por mim para chegar aos meus amigos". Em poucos minutos, o tumulto já havia sido difundido.

Pergunto a Carlos Said: "Isso é verdade?"

Ele sorri e diz: "Como eu te disse antes, o que é fato e o que é ficção são um borrão para mim agora".

Em meados da década de 1980, um único evento indiscutível ocorreu sem aviso: a voz de Carlos Said desapareceu. Ele não podia pronunciar uma única palavra discernível. Os anos de conversa ininterrupta cobraram seu preço.

"Perdi minha arma mais importante", lembra.

Angustiado, licenciou-se da rádio e da escola onde lecionava. Ele escrevia bilhetes para se comunicar com amigos e familiares. Com o tempo extra, aumentou seu trabalho no jornal, focando em peças históricas, que ele gostava.

Alguma leviandade voltou em 1987, quando uma das escolas de samba locais, a Sambão, produziu sua música-tema para o Carnaval anual pré-quaresma baseada na vida de Carlos Said. Ele foi o grande marechal do desfile da Terça Gorda, e o Sambão conquistou o primeiro lugar na competição entre outras escolas de samba.

Sua incapacidade de falar não diminuiu a importância do dia.

"Foi magnífico", diz. "O evento número um da minha vida. Em todos os lugares que eu ia, ouvia a música sendo tocada."

Demorou dois anos, mas sua voz finalmente retornou – embora uma versão menor do original. Ainda assim, Carlos Said retomou as suas funções de anunciador, tanto na estação como na cabine com a Didimo, e voltou a dar aulas também.

"Foi", diz ele, "uma felicidade inacreditável. Meus fãs estavam na lua para ouvir minha voz novamente."

Carlos Said hoje

Estamos conversando há mais de uma hora. Em vez de cansado, como seria de esperar de um homem da sua idade, Carlos Said parece mais energizado do que quando começámos. Recapitular uma vida rica e variada pode fazer isso com uma pessoa.

Deixou de dar aulas em 1992 e encerrou a carreira jornalística no final dos anos 90. Permaneceu na Rádio Pioneira fazendo reportagens diárias e cobrindo partidas de futebol aos domingos até 2020, completando 75 anos de carreira.

Ele diz que sente falta do ensino, o mais gratificante de suas profissões por causa do número de alunos que impactou, mas não do resto. Fãs e amigos param de vez em quando para conversar sobre esportes ou se encontrar para almoçar. Ele tem uma família grande e unida que inclui netos e bisnetos. Às vezes, eles se reúnem para as refeições de domingo. Sua filha mais velha, Soraya, mora com ele, atendendo às suas necessidades. Ele aprecia muito a presença dela.

Um dia típico? "Eu escuto rádio. Assisto TV. Leio um pouco. Como demais. E dormu muito bem", diz Carlos Said.

Saudável, ele está em forma, mas precisa de uma bengala para se locomover. O aperto de mão do Magro de Aço é firme, revelando uma força surpreendente.

Sua fama parece segura. Seu filho, Gustavo, professor de jornalismo e mídia na mesma universidade estadual onde Carlos Said também lecionou, publicou dois livros sobre o pai – um uma biografia, outro um relato ilustrado do acidente e de sua recuperação. Ao longo dos anos, sua imagem apareceu em outdoors por toda a cidade, seu lendário apelido em letras garrafais e brilhantes. Um ginásio adorna seu nome.

No início deste ano, uma trupe de teatro local apresentou uma peça cobrindo sua carreira. Depois, o ator principal encontrou Carlos Said na plateia. "Sinto-me honrado por tê-lo retratado", disse. Brincou Carlos Said: "Fiquei feliz por ser mais novo por um dia".

Ao recapitular o evento para mim, ele foi mais sério. "Não há palavras para descrever minhas emoções dessa experiência."

Pergunto se ele se arrepende. Imediatamente, ele chora e começa a falar sobre sua falecida esposa, Rochelane, que morreu de um ataque cardíaco em 1998.

"Ela era tudo para mim. Eu estava fora o tempo todo, mas ela estava sempre lá, me esperando. Ela acreditou em mim. Ela me estimulou e me apoiou quando ninguém acreditava que eu poderia ser um bom jornalista. Ela me disse: 'Faça. É o seu sonho. Vou criar os filhos'".

Com as emoções em xeque, Carlos Said diz que não se arrepende da carreira. "Tenho lembranças muito boas da minha vida. Tudo valeu a pena. E faria tudo de novo, se pudesse, da mesma forma."

Pergunto: o que seu pai diria se tivesse vivido para ver seu sucesso?

Isso provoca uma grande gargalhada de Carlos Said.

"Com certeza ele ainda diria: 'Pare de jogar futebol!'"

Nota do editor: Primeira de uma série de uma viagem de reportagem ao Brasil de 21 a 27 de outubro de 2023

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