A psicanálise, a esquerda que não sabe de si e o neofascismo brasileiro
Petistas esquecem muito cuidadosamente que desejaram Bolsonaro no segundo turno em 2018

por Tales Ab`Sáber, no Caos Filosófico
Muitos andam preocupados com a radicalidade passional, violenta, irracional e perigosa do bolsonarismo na vida política brasileira.
Liberais, que permitiram, por interesse, que a energia política dessa gente passasse por democrática, se assustam com o terrorismo antidemocrático de seus aliados de extrema direita.
Deveriam, antes, se assustar consigo mesmos, que caminharam de mãos dadas e excitados com torturadores e proto-ditadores muito explícitos, como se tudo valesse a pena contra a esquerda democrática brasileira.
Esta história é bem conhecida. Petistas, com o partido hoje recolhido, esquecem muito cuidadosamente que desejaram Bolsonaro no segundo turno em 2018. Por cálculos políticos e desentendimento do que ocorria, acreditaram em dado momento que qualquer um o venceria ao final, e que toda a ruína da política brasileira dos anos anteriores havia sido feita apenas para eleger os tucanos. Como se os parâmetros fossem os dos anos 1990 e 2000.
Muitos intelectuais que recusaram pensar a existência do fascismo, dos vários modos possíveis de conceber a ideia, em 2017 e 2018, correm agora para atualizar o seu entendimento de mundo, mundo que os negou e ultrapassou na frente do nariz, mas, então, não se reconhecia.
O fascismo, que é uma produção subjetiva de organização de forma da fantasia, do grupo e da política, conta fortemente com a relação psicopolitica estratégica da recusa dos liberais – e da inteligência…, diziam Adorno e Horkheimer – dos bem postos no mundo e dos satisfeitos, das várias posições simbólicas de privilégio existentes e seu pequeno narcisismo e operação de arrogância, para se afirmar neste vazio do conceito e de sensibilidade para a natureza política da violência.
Ele cresce na cara de todos que, muito mais inteligentes e sabidos do que é o mundo, simplesmente recusam a relação primitiva de ilusões, vinculação grupal, idealizações, linguagem degradada e ponto de fuga na violência sacrificial e no líder autoritário bem comum, levada por ignorantes e homens das ruas, como movimento político, de conversão “à forma” de produzir poder e violência e não ao conteúdo, de grande eficácia política.
“Se se quer saber desse negócio de nazismo é uma coisa que se deve perguntar ao professor de filosofia e ao açougueiro da esquina”, era um chiste alemão de 1936. Como muitos de nós nunca queremos saber da vida dos açougueiros, e seus códigos de existência política, sua vinculação emocional com a violência, simplesmente nada queremos saber do horror presente na política de nosso próprio mundo.
De fato, a violência nunca se abaterá sobre nós, é o que diz o pensamento satisfeito com a própria inteligência. Uma deformação classista profunda da própria relação com a história. Muitos dos que deram de ombros ao poder fascista articulado ao cinismo liberal, em 2015, 2016, 2017 e 2018, bem como os próprios perversos políticos liberais, agora tem teorias e mais teorias do fascismo entre nós.
Que, evidentemente, não devem incluir o ponto político fundamental da própria cegueira no início e crescimento da coisa toda. Como todos sabemos, cientistas sociais e perspectivas de esquerda sabem muito bem do outro, mas muito pouco de si mesmos.
Mais uma vez, para aqueles que desdenham da relação produtiva da psicanálise com sociedade e política, quero lembrar que desde o primeiro instante, anos antes da chegada de Bolsonaro ao poder, os psicanalistas apontaram com insistência a emergência e o problema da realidade do neofascismo no Brasil.
Quando fiz um documentário e escrevi um livro apontando as práticas de violência e ideologia autoritária dos grupos sociais de apoio do governo golpista de Temer, baseadas na ideia de extermínio da esquerda na vida política, que inevitavelmente convergiriam como grupo em expansão para o projeto de extrema direita neoliberal de Bolsonaro no país, a utilização da ideia de fascismo – como força social real produto das contradições do capitalismo contemporâneo no Brasil, do golpe político parlamentar midiático, das novas hordas de extrema direita nas ruas e na internet, bem como das políticas equivocadas de esquerda – era necessário debater quase todos os dias com colegas e intelectuais sobre a evocação do termo.
Eles não viam nenhuma pertinência na categoria, e não achavam que valia a pena investigar a ideia da real emergência de um neofascismo para o Brasil atual. Enquanto isso a vida política nas ruas se convertia em mentira, calúnia, cala boca, militarismo, amor pelas armas e paixão identificatoria grotesca com o líder fascista.
Se isso não era importante, resta perguntar o que os colegas estavam vendo do Brasil então? Em 2016 surgiu o coletivo de psicanalistas “Precisamos falar sobre o fascismo”, com Débora Abramant e Aldo Zaiden promovendo debates e tentando alertar a comunidade política de esquerda sobre a realidade do avanço psicopolitico do fascismo no Brasil.
Pouco depois surge o movimento amplo “Psicanalistas pela democracia”, cuja afirmação política teórica da democracia, para a psicanálise e para a vida, era o apontamento da contrapartida antidemocrática que tomava corações e mentes no campo da vida política brasileira.
Junto com os grupos de direitos humanos, jovens e negros, que denunciavam a militarização oficial da crise social, com a afirmação da política de extermínio de Estado como uma virtude brasileira, psicanalistas vinham a público dizer o pior de uma sintomática social irrecusável em sua realidade e efeitos, mas ainda assim, em outra face do entendimento do país, perfeitamente recusável.
Como dizia Adorno, um filósofo crítico político que conhecia e respeitava profundamente a psicanálise freudiana, e entendia que a própria razão ocidental era baseada em uma equação de posicionamento do outro, da linguagem e do pensamento que tinha um fundo inconsciente de caráter fascista: “Em psicanálise tudo é falso. A não ser os seus exageros”.
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