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Economista

Acilino Madeira

Economista

“Não vou a procura dos outros, vou a procura de mim” - disse o velho africano

Foto: Dodó MacedoO retorno a si mesmo
O retorno a si mesmo

 

Há determinadas passagens na literatura que sempre nos põe a pensar. Quando a pandemia do Covid-19 se alastrou no Brasil e no mundo, lembrei-me de um livro muito louco do Ignácio Loyola de Brandão: “Não verás país nenhum” (1981). Um romance que li quando ainda jovem adulto, mais para adolescente ainda. Era como se tivesse que mergulhar propositadamente em um pesadelo. O Brasil nos primórdios da década de 1980, havia muita efervescência política e poucos horizontes econômicos, sobretudo alvissareiros.

Na atualidade, quatro décadas depois e a situação é de total cegueira política e de inferno econômico, de crise sanitária aguda e de total falta de perspectiva futura. Muito se fala do “novo normal”. Não obstante, parece-me mais o coroamento de um reino repleto de impossibilidades. Se ao menos fossemos conduzido pela mão de Alice, menos mal. No entanto, somos conduzidos muito mais por ideologias provadamente fracassadas, do que por utopias que nos façam andar como na visão de Eduardo Galeano, nosso irmão e escritor uruguaio.

Neste turbilhão de agora, pelo qual todos nós passamos, estamos sofrendo bastante: são perturbadoras as insanidades e a falta de empatia de Bolsonaro e de seus filhos, como também as esquizofrenias de seus ministros, principalmente as de Paulo Guedes. Por conseguinte, recordei de uma passagem do livro “Nação Crioula” (2010), do escritor e também irmão angolano José Eduardo Agualusa. Trata-se de uma história contada de um amor secreto sobre a misteriosa ligação entre o aventureiro português Carlos Fradique Mendes – cuja correspondência Eça de Queiroz recolheu – e Ana Olímpia Vaz de Caminha, que, tendo nascido escrava, foi uma das pessoas mais ricas e poderosas de Angola. Acrescenta Agualusa, ter se passado tal história, nos finais do século XIX, em Luanda, Lisboa, Paris e Rio de Janeiro, misturam-se personalidades históricas do movimento abolicionista, escravos e escravocratas, lutadores de capoeira, pistoleiros a soldos, demiurgos, numa luta mortal por um mundo novo. Na verdade, o “novo normal” daquela época.

O protagonista Fradique Mendes, em carta a Eça de Queiroz, conta que no ano de 1877, após comprar o Engenho Cajaíba, em São Francisco do Conde, no recôncavo baiano, resolveu conceder carta de alforria a todos os cativos daquela propriedade por ele adquirida. Na ocasião houve uma grande festa comemorativa com a presença de várias autoridades importantes da região, e os trabalhadores optaram, na sua maioria, por permanecer no mesmo serviço. Pela razão do novo proprietário do engenho oferecer a todos os alforriados o mesmo que nas províncias do Sul se pagava aos colonos europeus, e ainda se responsabilizando pela saúde de todos e a educação dos filhos.

Em continuação, narra Fradique Mendes que um dos poucos homens que não quis ficar foi Cornélio, um velho hausa (do tronco negro Yorubá) que esteve presente e também no combate na Revolta Malê de 1835, no recôncavo e em Salvador. O velho escravo, com o antigo orgulho da raça, lhe falou que pretendia regressar a África, e visitar a Meca, e depois morrer. Disse Cornélio: “A vida de um escravo é uma casa com muitas janelas e nenhuma porta. A vida de um homem livre é uma casa com muitas portas e nenhuma janela”. Ainda tentaram dissuadi-lo a desistir de seu propósito, mas ele mostrou-se inflexível: “Na terra dos hausas já ninguém se lembra de si”. Disse-lhe uma amiga. O velho encolheu os ombros: “Não vou a procura dos outros”, respondeu: “Vou a procura de mim”.

O Brasil é um país misturado, a miscigenação de etnias principalmente no nosso Nordeste é uma verdade inconteste. Em nome do sangue dos Malês que com certeza corre em nossas veias, tenhamos a dignidade do escravo Cornélio: no “novo normal” ou nos pós pandemia, que com certeza culminará com o fim do governo Bolsonaro (nossa carta de alforria é a saída de Bolsonaro do poder), não vamos cair na lábia dos novos colonizadores.

Não vamos à procura de receituários de outrem, mas sim da procura de nós mesmo e do que possamos construir de futuro e para o futuro das novas gerações de brasileiros e brasileiras. Esse tempo logo chegará.

OBS: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do pensarpiaui.

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