Pensar Piauí
Piauiense

Oscar de Barros

Piauiense

Lembranças de um pai

Foto: Arquivo pessoal

Lembranças

Domingo passado, Dia dos Pais, senti vontade de republicar esse texto, mas só o reecontrei hoje. Como, para mim, todo dia é dia dos pais, das mães, dos filhos e de todo mundo, decidi publicá-lo mais uma vez. Originalmente, ele foi escrito em 02/05/2010, quando eu tinha blog no acessepiaui.com.

LEMBRANÇAS 

João Manoel de Barros nasceu em 1913. Lá nos interiores da região de Picos. Homem da roça. Foi na roça que trabalhou. Magro, alto, pele marcada pelo sol. Plantou arroz, feijão, milho, mandioca, cana. Criou gado, ovinos, caprinos. Deu conta da subsistência.


Sério, sisudo não! Amigo, companheiro. Boa conversa e para acompanhá-la um café, daqueles que vem com polme no fundo da xícara, e, um cigarro com o fumo amassado na palma da mão, preparado ali mesmo, durante a palestra. O fumo, a faquinha e o papel de cigarro eram acessórios que carregava ou estavam sempre por perto.

Sentado em 2 pés de cadeira com o encosto da mesma escorado na parede ia trocando as idéias com o interlocutor, normalmente, um dos vários compadres. Pegava o rolo de fumo e a faca. Cortava pequenas fatias que eram depositadas na palma da mão esquerda; com o encontro da mão direita com pulso, pressionava o fumo, até que do pó se aproximava. Nos lábios já estava pendurada a fina folha de papel. Com o fumo no ponto e o papel em forma de calha, o cigarro ganhava forma, e o papel era selado pela língua, que com sua saliva, lacrava-o.

Outra forma de descanso era passar a “mei-dia” numa rede. Cochilar. Para isso Francisca e Lúcia, de preferência esta, eram acionadas para um cafuné. Ele deitado, as meninas em pé encostadas na rede a acariciá-lo. Até eu fiz. Poucas vezes. Mas como foi bom mergulhar meus dedinhos naquele cabelo e vê-lo dormir.

Quando à tarde caminhava para seu fim, o sol caia e ele voltava da roça. Os cuidados com os animais de chiqueiro e o asseio para o descansar em mais uma noite sertaneja. Às vezes a criançada tinha pedidos a fazer. O meu, invariavelmente, era ir “lá pra cima” (conglomerado de casas que reunia avós, tios e primos geograficamente localizado num ponto mais acima do que nossa casa). Às vezes ele não aceitava: prenúncio de chuva, dia exaustivo ou simplesmente porque não queria viver aquela “conversaiada” típica das rodas de parentes. Era uma tristeza. Na maioria das vezes, ele aceitava. A senha para se saber, era o jumento.


- “Menino, vai ao quintal pegar Beato”.

Que alegria, ele aceitara. Beato foi meu primeiro Corola. Também preto mas sem pneus; com 4 patas e sem piloto automático; seu lento passo exigia de todos nós extrema paciência. “Lá em cima” eram homens na varanda, mulheres no recuo da casa e a meninada no terreiro. Ele determinava a hora de voltar, que sempre era do meu desagrado, porque queria brincar mais. Voltando lá para casa era cochilar na cangalha do Beato, diferentemente de hoje que a direção do carro exige absoluta falta de sono.

Dia de sábado, era dia de ir a Picos, fazer a feira. A arrumação começava na sexta. Separavam-se os animais que iriam para a cidade e as cargas que seriam transportadas. Em plena madrugada o comboio saia em destino à “rua”. Acompanhando ele, alguns ajudantes e um ou outro filho, em casa ficavam os outros, cada um, com uma responsabilidade a cumprir durante o dia. A casa se preparava para o final de semana. Os terreiros eram varridos. Eram de terra, mas ficavam a coisa mais limpa do mundo. E o forno ardia em brasas para, no começo da tarde, disponibilizar deliciosos bolos que seriam as iguarias do final do sábado e do domingo. No finalzinho da tarde, a tropa chegava de Picos. As cargas de arroz, feijão, milho, rapadura, foram vendidas, assim como o couro de boi, e, alguns mantimentos, que a casa precisava, foram adquiridos. Para os pequenos alguma guloseima. Mas o principal que vinha de Picos, eram as noticias de São Paulo, que chegavam pelo correio no endereço da Casa Almir Sá. Chegando durante a semana, seu Almir guardava o envelope, porque era certo que no sábado ele seria pego.

O leite era ele quem tirava. Toda manhã, bem cedinho. Eu gostava de ver. Na véspera sempre pedia pra ele me acordar na hora da ordenha. E de manhã meu pedido provocava teima entre ele e mamãe. Ele queria me atender, e, mamãe, queria me ver dormir mais, não queria que eu fosse acordado. Mas ele ganhava a peleja. Na cerca do curral, enquanto espantava mosquitos que invadiam meus olhos, observava seus métodos. O caldeirão para o leite ficava encostado num canto do curral longe dos animais, era a certeza de não ser derrubado. As duas, três ou quatro vacas que estavam amamentando tinham sido separadas das crias na noite anterior, presas dentro de uma das partes do curral. Do lado externo dele, os bezerros aguardavam famintos. Ainda como acessórios ele tinha a caneca com a qual ordenharia a vaca e a corda de couro para amarrar a cria na perna da vaca. A porteira que separava mãe e filho era aberta. O bezerro corria para sua mãe, mamava um pouco, então, com sua força física ele tirava o bezerro do peito da vaca, amarrava-o na perna do animal e “tirava o leite”. Com a caneca cheia, ia lá ao canto do curral esvaziá-la no caldeirão. Se a vaca fosse boa ainda dava outra caneca, do contrario, era hora de liberar aquele bezerro e iniciar a ordenha das outras vacas. Aqui ou acolá me oferecia um copo de leite. Natural. Saído do peito da vaca, sem fervura, sem nada. O leite vinha espumoso, quente. Na realidade eu não gostava não. Porque era naquele tempo. Se o tempo voltasse eu beberia o leite todo e ainda iria lá ao caldeirão no canto do curral.

Tinha o dia de missa. Novamente os animais eram preparados. Ele não tinha cavalos, preferia trabalhar com mulas, que a gente chamava de burras. A dele era a “burra Preta”. Bem zelada, não carregava cargas, existia só para a sua montaria. Era seu transporte oficial. Para conduzir a mulher, a “burra Preta” foi adestrada para encostar-se à cerca, calçada ou aceitar a colocação de uma cadeira próxima a si. Assim, ficava fácil montar em sua garupa. Meu lugar era na “lua da cela”. Parte mais alta da montaria do animal com o formato do astro noturno. Ele já montado na burra Preta, a mamãe ia para a garupa e eu acomodado à sua frente. Com o braço direito ele conduzia as rédeas do animal. O esquerdo passado sobre meus peitos, me encostava em seu dorso, e, ali, eu me sentia no lugar mais seguro do mundo. Por caminhos de terra, pedra ou lama a burra Preta nos levava à missa. Na igreja, um comportamento de fina classe. Classe do sertanejo rude. Calça social, camisa de manga, chapéu de massa. Se a missa era dentro da igreja, o chapéu era tirado da cabeça - um sinal de respeito. Se fosse externa, na hora em que o padre levanta o Senhor, o ajoelhar também era respeitoso, o chapéu na mão era levado até o peito para as orações daquele momento. Depois da missa, uma “budega” para comprar um bombom ou um refrigerante do pé do pote. Depois, a família na burra Preta de volta ao lar.

Dia 25 de abril passado fez 33 anos que Deus o chamou. Foi numa segunda-feira. Por circunstâncias da vida (alguns chamam de destino), não fiquei sabendo no próprio dia, estava internado num hospital, soube apenas 5 dias depois, na sexta-feira. Aí era hora de chorar.

Agora em 2010, um irmão me perguntou se eu lembrara a data (25 de abril) e eu respondi que sim. Lembranças não faltam, às vezes podem até falhar! O que não falha e sobra em abundancia é a saudade. Que vontade de abraçá-lo, beijá-lo e lhe pedir:

- “Bença, papai”

Foto: Arquivo pessoalPapai

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