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Economista

Acilino Madeira

Economista

A estrutura infame do racismo real

Foto: InternetGeorge Floyd e Miguel
George Floyd e Miguel

 

O escritor argentino Jorge Luís Borges, em sua “História Universal da Infâmia”, cuja primeira edição data de 1935, tem início com a narrativa sobre “o atroz redentor Lazarus Morell” – o autor o descreve como um infame ladrão de negros para venda futura. Interessa a passagem do texto de que em princípios do século XIX, as vastas plantações de algodão que havia nas margens do Mississippi (EUA) eram trabalhadas por negros, de sol a sol. Custava um bom escravo, aos proprietários daquelas terras, mil dólares e não durava muito. Em continuação, escreve Borges: “alguns cometiam a ingratidão de adoecer e morrer. Era preciso arrancar daqueles seres instáveis o maior rendimento”.

A escravidão negra teve o bem merecido destaque de ser a principal infâmia na história universal de Jorge Luís Borges. Mais de duzentos anos depois (2020), os Estados Unidos da América presenciaram a morte dolorosa e sufocante de George Floyd – um negro sem posses (46 anos) – por um policial branco, em um ato de infâmia e covardia, não muito diferente dos praticados por Lazarus Morell.

O mundo inteiro se sensibiliza com a dor que se abateu sob o peso de se nascer com a pele escura nos States. O Brasil, país com maior população negra fora do continente africano, sabe e sente essa dor em profundidade. Há tempos que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, cá entre nós brasileiros, anuncia o poeta. Não é só poesia. É a maldita face do racismo estrutural atormentando a sociedade brasileira.

A onda de extrema direita que tomou de conta dos EUA mais uma vez, a partir da chegada de Donald Trump ao poder, foi de varredura ou negação dos ideais de igualdade racial, cujo expoente máximo foi Martin Luther King. Com a pandemia do Covid-19, o “american dream” virou pesadelo, por conta das desigualdades entre as etnias não brancas nos EUA, principalmente dos afro-americanos, correspondente a aproximadamente a 40 milhões de habitantes – 13,8% da população estadunidense.

No Brasil, o governo Bolsonaro é uma cópia grotesca do negacionismo de Trump, com vários agravantes, principalmente de desmantelamento das instituições. No momento, o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, também preto, denominou o movimento negro brasileiro de “escória maldita”. Não bastasse, a negação da própria pandemia do Covid-19, até na propaganda institucional, em um cartaz de pura alienação étnica, as crianças brasileiras que nele aparecem, passam a ideia de que somos um país com matriz étnica nórdica e não africana, como na realidade.

Por falar em crianças, um menininho preto (de cinco anos), por nome Miguel Otávio Santana da Silva, caiu no 9º andar do prédio Píer Maurício de Nassau, no bairro São José em Recife-PE, nesta última terça-feira (02.06.2020). A empregadora da mãe da criança Mirtes Renata (doméstica preta e pobre), Senhora Sarí Côrtes Real (branca e rica), esposa do prefeito de Tamandaré-PE, Sérgio Hacker, solicitou que a mãe da criança fosse passear como o seu cachorro, ficou com a guarda momentânea de Miguel e por pura insensibilidade, racismo e negligencia, despachou a criança para o 9º andar do prédio, de onde o mesmo despencou perdendo a vida. Sem remorso, sem paciência de tirar a criança do elevador, apertou o botão e voltou para fazer as unhas. A empregada doméstica, pegou Covid-19 do patrão, perdeu o filho trabalhando em plena pandemia e a patroa mesmo presa em flagrante (homicídio culposo), pagou fiança de R$ 20 mil e em seguida foi posta em liberdade. E se fosse inversa esta situação de infâmia? O certo é que a escravidão continua para as empregadas domésticas brasileiras ...

Nos EUA, o racismo é muito violento a partir dos protocolos policiais de abordagem à população negra, mas há um enfrentamento com a ajuda de outros grupos étnicos e até de uma parcela de brancos bem-educados. No Brasil, os protocolos de abordagem policial às populações negras e indígenas transbordam os ditames do ethos civilizacional e se configuram como práticas autorizadas de genocídio.  O racismo no Brasil existe, é um racismo ao extremo estrutural.

Ao tempo em que Lazarus Morell, personagem de Borges, negociava criminosamente com a venda ilegal de negros às margens do rio Mississippi, o Brasil se tornava independente de Portugal (1822), mantendo a maldita instituição do escravagismo negro. Somente em 1888, houve a Abolição da Escravatura. Uma outra lei para inglês ver. A literatura realista de Machado de Assis informa a percepção das elites nacionais quanto ao tema da abolição. Quando em 14 de novembro de 1890, Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, teria mandado queimar documentos sobre a escravidão, Machado de Assis assim escreve: “a queima de leis, decretos e avisos não apaga a mancha histórica da escravidão”.

Ironicamente, em Esaú e Jacó (1904), o bruxo do Cosme Velho, sugere na fala de um personagem (o monarquista Pedro) que o fim da escravidão negra poderia ser o prenúncio de outra revolução, mais larga: “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipando o preto, resta emancipar o branco”.

Será o governo Bolsonaro, com seu séquito de misóginos, homofóbicos e racistas, o instrumento certo para a vivificação da assertiva machadiana transcrita acima?

OBS: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do pensarpiaui.

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