Viomundo - Desde a faculdade, todos nós jornalistas aprendemos que informação correta é nosso bê-á-bá.
No Jornalismo, informação fiel à verdade factual é fundamental.
Na área da saúde, então nem se fale.
Afinal, lida com a vida, o bem mais precioso de todo mundo.
Não dá para apurar mal, ser descuidado, impreciso, errar, sobretudo se envolver denúncia grave.
Após publicar uma reportagem equivocada, o veículo não pode simplesmente no dia seguinte dizer ao leitor, telespectador ou ouvinte: Erramos.
Primeiro, porque, em tempos de internet, não se tem controle sobre o fluxo da informação.
Segundo, porque sendo uma denúncia dramática, delicada, preocupante, vai ser reproduzida velozmente por todas as mídias.
Terceiro, porque, a essa altura, muitos provavelmente já abraçaram como verdadeira uma informação errada, distorcida, incompleta.
O estrago está feito. Os possíveis danos colaterais dependem de cada caso.
Reduzi-los não é fácil. Revertê-los 100%, impossível.
Aparentemente, a Folha de S. Paulo não aprendeu ou se esqueceu da epidemia midiática de febre amarela (janeiro/2008) e das previsões absurdas da gripe suína (julho de 2009).
Dois crimes contra a saúde pública brasileira.
Pois, desde 2 de julho de 2021, profissionais de saúde, gestores e parcelas da população enfrentam as sequelas de mais este crime da Folha contra a saúde pública brasileira.
2 de julho de 2021, 12h25
Na sexta-feira retrasada, 2 de julho, a Folha publicou a reportagem Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra a Covid; veja se é um deles.
No subtítulo, detalhou: “26 mil doses da Astrazeneca fora da validade foram aplicadas em 1.532 municípios”.
Trata-se de um levantamento feito por Sabine Righetti e Estêvão Gamba.
Eles cruzaram os dados de dois sistemas abertos do Ministério da Saúde.
DataSUS, que identifica os vacinados com código individual, e Sage (Sala de Apoio à Gestão Estratégica), que contém informações sobre lote, fabricante, prazo de validade e data de envio das vacinas aos estados.
Com base apenas nesses dados, Righetti e Gamba concluíram:
— 139.911 doses de oito lotes da vacina Astrazeneca estavam com o prazo de validade vencido.
— 25.935 doses com validade vencida foram aplicadas em 1.532 municípios.
— 113.976 doses vencidas não tinham sido utilizadas até 19 de junho, quando fecharam o levantamento, como mostra o quadro abaixo publicado na reportagem de Righetti e Gamba.
Instantaneamente, a matéria foi manchete no portal Uol, inclusive vídeo no Uol News.
Rápido ganhou repercussão nacional, já que 1.532 cidades dos 5.568 municípios brasileiros estão na lista, entre as quais algumas capitais, como registra este trecho:
Eram 12h25 da sexta-feira retrasada, 2 de julho, quando foi postada na internet.
Caiu como uma bomba.
Depressa seus efeitos começaram se manifestar por todos os cantos do País.
Médicos recebendo ligações e mensagens por aplicativos de pacientes, amigos, familiares, para saber se a vacina vencida faria mal e se teriam que se revacinar.
População batendo à porta das Unidades Básicas de Saúde (UBS), com os mesmos questionamentos.
Gestores políticos pressionando os profissionais das salas de vacina das UBS, para saber o que havia acontecido para o município estar na lista da reportagem da Folha.
No mesmo dia, várias prefeituras rebateram.
Algumas delas: Maringá (PR); São Paulo (SP); Belo Horizonte e Juiz de Fora (MG); Salvador, Vitória da Conquista e Juazeiro (BA); Nilópolis (RJ); Belém, Marabá, Altamira, Itaiutaba e Ananindeua (PA).
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) divulgaram nota conjunta (na íntegra, ao final), afirmando:
–Todos os casos serão investigados.
— “Não está descartado erro do Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações, que desde o início da Campanha de Vacinação apresenta instabilidade no registro dos dados”.
Naquele final de semana, perguntei a quatro médicos – três infectologistas e um pediatra especialista em imunização — o que achavam da seriíssima denúncia da Folha.
Os quatro sugeriram “muita cautela”.
Entre eles, o médico infectologista e doutor em Saúde Coletiva Eder Gatti, que se dedica à imunização na rede pública de São Paulo.
“Não dá para colocar o PNI [Programa Nacional de Imunização] em xeque em cima dessa matéria, que desacredita o programa de vacinação e o próprio SUS”, afirma Eder Gatti, em entrevista ao Blog da Saúde, do Viomundo.
“O Programa Nacional de Imunização não é só o governo Bolsonaro, essa tragédia que está aí colocada”, frisa.
“O Programa Nacional de Imunização tem toda uma cadeia de procedimentos, que não é apenas federal; é também estadual e municipal”, argumenta.
“O Sistema Único de Saúde (SUS) tem uma série de mecanismos para evitar erros na vacinação. E, se eventualmente ocorrer, tem também mecanismos para corrigi-los”, atenta Gatti.
5 de julho de 2021, 20h49
A Folha atualiza a matéria. Altera título, intertítulo e gráfico.
Ao título inicial — Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra a Covid; veja se é um deles –, acrescenta Registros indicam.
O intertítulo recebe o complemento Dados do Ministério da Saúde mostram.
Ou seja, a Folha que no dia da publicação assumiu a paternidade pela revelação bombástica transferiu-a para o Ministério da Saúde. É aquela velha história de que filho feio não tem pai.
Já num dos quadros, acrescentou a informação do total de doses dos oito lotes colocados sob suspeição: 3,9 milhões. As 26 mil doses denunciadas representam 0,66%.
6 de julho de 2021, 21h50
Nova atualização da matéria.
Ela não se limitou a uma frase ou outra.
Do começo ao fim, o conteúdo é bastante alterado.
Não dá para saber com exatidão todas as mudanças, pois não tem alguma marcação que nos permita identificá-las.
É praticamente outra reportagem, embora o link seja o da versão original.
6 de julho de 2021, 21h50
Um minuto depois, a Folha publica um outro texto no qual admite o erro.
Entre a publicação em 2 de julho, às 12h25, e a admissão do erro em 6 de julho, às 21h50, se passaram quase 4 dias e meio. Mais precisamente 105 horas e 25 minutos.
A matéria, é claro, foi feita com as melhores intenções.
O problema é que deu abordagem simples para algo muito complexo.
Sequer ouviu um especialista que atua na área para saber se os achados tinham sentido.
Admitir o erro é importante, mas não apaga os danos que causou, como a preocupação disseminada e as idas desnecessárias das pessoas às UBS.
Com o agravante de lançar dúvidas sobre a vacinação e o próprio Sistema Único de Saúde.
Prato cheio para os negacionistas antivacina e os lobbies que querem passar a mão nos recursos do SUS e privatizá-lo.