Por Daniel Afonso da Silva, historiador, no GGN
O retorno do presidente Lula da Silva tem servido de redenção para a presidente Dilma Rousseff. E não poderia ser diferente. A prisão daquele em 2018 foi anunciada com o impeachment desta em 2016.
Na cerimônia de entronização do 1º de janeiro de 2023, a primeira mulher presidente da República do Brasil foi ovacionada, exaltada e reverenciada. Entre os partidários do PT e do novo governo, tratou-se, desde sempre, de uma operação consciente de “reparação histórica”.
O movimento concreto dessa “reparação” começou na abertura das urnas em outubro. Imediatamente a seguir, com a convicção da vitória, cogitou-se oferendar postos diplomáticos importantes à dignatária. O primeiro esforço foi o de enviá-la para representação brasileira em Lisboa. Outro envolveu a embaixada homóloga em Buenos Aires.
Mas, por honra e pudor, a senhora presidente, responsavelmente, declinou, recusou e mudou de assunto.
Em inícios de janeiro, os adeptos da “reparação a qualquer custo” voltaram à carga. E, agora, às vésperas do carnaval, subiram completamente a fervura. Definiram um cadeau irrecusável, num um lugar estratégico inquestionável e, pretensamente, à altura dos anseios e da estatura da presidente.
Identificaram a presidência do Novo Banco de Desenvolvimento, o banco dos BRICS, em Xangai, como a comenda sob-medida para compensar a injustiça do impeachment de 2016.
Desde o regresso do presidente Lula da Silva a Brasília após a sua turnê por Boa Vista, Buenos Aires e Montevidéu que a tese do envio de “alguém de confiança” para a presidência do banco dos BRICS ingressou na narrativa lulista, petista, dilmista. O atual presidente do banco, o brasileiro Marcos Troyjo, demasiado vinculado ao governo anterior e desconhecido do grande público, foi tornado, da noite para o dia, persona non grata e jogado à fúria dos abutres da opinião pública de plantão. A sua destituição foi construída e imposta como incontornável. Para o seu lugar, elegeram a presidente Dilma Rousseff.
Marcos Troyjo é o segundo presidente do banco, criado em 2014, em Fortaleza, no Brasil, durante a presidência de Dilma Rousseff – o primeiro banqueiro dos BRICS foi o economista indiano Kundapur Vaman Kamath. Troyjo é diplomata de carreira licenciado do Itamaraty, jornalista, economista, professor, empresário, um dos responsáveis pelo jornal Gazeta Mercantil e foi responsável pela área internacional do Ministério da Economia sob a presidência do capitão e a gestão de Paulo Guedes. Ele assumiu o cargo em Xangai em meados de 2020, possui mandato e contrato até 2025 e, agora, está às voltas de ser defenestrado e aceitar, como prêmio de consolação, algum escaninho no governo semibolsonarista do estado de São Paulo.
Sob vários aspectos, é justificável um cortês e delicado convite para que Marcos Troyjo evada, o mais urgentemente possível, o seu posto em Xangai. Ninguém em Brasília – nem os seus colegas no Itamaraty ou nos demais prédios da Esplanada dos Ministérios – aprova a sua permanência. Ele foi um dos inspiradores intelectuais da plataforma Ponte para o Futuro que colocaria um dos pregos mais profundos no caixão do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. Se não bastasse, também virou, sob a presidência de Michel Temer, um olavista, bolsolavista, olavobolsonarista convicto e passou a detratar, mesmo que elegante e diplomaticamente, os feitos daqueles que governaram o país de 2003 a 2016. É impossível defendê-lo na função. Isso é evidente desde a transição de presidência.
Mas o golpe final veio agora. Enquanto o presidente Lula da Silva se entrevistava com o presidente Joe Biden, em Washington, na sexta-feira, 10 de fevereiro, o noticiário brasileiro confirmou aquilo que os portais independentes já anunciavam: após consulta aos demais países-membro dos BRICS, foi aceita a indicação da presidente Dilma Rousseff para substituir Marcos Troyjo na presidência do banco.
Alguma euforia tomou conta dos correligionários lulistas, petistas, dilmistas, revisionistas e reparacionistas. Muitos vaticinam que, agora, sim, a presidente Dilma Rousseff vai receber o galardão que merece. Outros indicam que será excelente para o Brasil, para o governo e para os BRICS. Todos concordam que, com o cargo em Xangai, justice will be done e a presidente vai viver, por lá, “sem medo de ser feliz”.
É até compreensível que, no governo e fora dele, haja militantes que pensem assim e advoguem por essa alternativa. Entretanto, o conjunto dessas manifestações decorre de equívocos graves de percepção, inclusive moral. Equívocos nos quais, a nobre presidente da República do Brasil, não deve se assentar.
A cidadã Dilma Vana Rousseff chegou ao distinto e honroso posto de presidente da República de um país-continente extraordinário que é o Brasil pelo sufrágio universal. Milhões de brasileiros alienaram nela a condição guardiã de seus destinos. A derrocada de seu segundo mandato não mirava a ela propriamente, mas ao líder máximo da agremiação petista que é o presidente Lula da Silva. O incidente de 2016 foi uma mera preparação, avançada de uma trama urdida em segredo desde as noites de junho 2013, para, como verbalizou um senador muitíssimo indiscreto, “acabar com a raça dessa gente”. Ou seja, o conjunto do projeto democrático à esquerda que esteve em risco com o impeachment de 2016 e segue em risco até o presente.
Fixando-se apenas em 2016, a presidente Dilma Rousseff foi altaneira em sua própria degola. Não se curvou à empáfia do algoz nem vendeu a sua honra por moedas. Nem por trinta nem por nenhuma. Foi digna, honrada, caiu em pé. E em pé se manteve. Como fazem chefes de estado dignos de serem assim chamados: chefes de estado.
O que se sucedeu, depois da queda (e mesmo antes), foi a intermitência de humilhação, descrédito, desrespeito, hostilização, opróbrio e ostracismo. Ninguém sofreu mais que ela. Nenhum presidente da República, talvez no mundo inteiro, foi tão vilmente humilhado. E ninguém sofreu tão estoicamente em silêncio. A senhora Dilma Vana Rousseff, em todos esses anos, mostrou-se muito mais que um “coração valente”.
A ideia de “reparação histórica”, em primeiro lugar, despreza essa grandeza da senhora presidente da República. Mas, mais que isso, desconsidera o fundamental que reconhece que nada substitui uma presidência da República usurpada.
Nada – repita-se a exaustão e entenda-se sem divagação: nada – repara a destituição de uma presidência da República.
Ainda sobre isso, é preciso mensurar que a brutalidade daquela pantomima de 2016 maculou o conjunto da classe política brasileira, descontinuou a marcha da redemocratização e frustrou milhões de pessoas que acreditaram no projeto da reeleição da presidente em 2014.
A pessoa física da senhora Dilma Vana Rousseff pode – e deve – receber reparação. Mas a dimensão ungida de presidente da República não comporta paralelos. Não aceita prebenda. Não pode – nem deve – ser mercadejada no vilania de oferendas.
Quem advoga pela “reparação histórica” quer encontrar uma saída simples para um problema complexo quase insolúvel. O impeachment de 2016 – e a prisão de 2018 – foi um crime irreparável contra a nação brasileira. Um dardo certeiro no coração da redemocratização do país. Um país que, doravante, sangra.
Enviar a presidente Dilma Rousseff para Xangai não resolve o problema agudizado pelo impeachment de 2016. Em contrário, piora tudo.
A senhora presidente da República não deve assumir a presidência do banco dos BRICS. Fazê-lo é desrespeitar toda a parcela da população que acreditou no projeto de reeleição em 2014, sofreu perplexa e calada com a inclemência do impeachment de 2016 e da prisão de 2018 e ficou amedrontada com os desatinos do 8 de janeiro de 2013.
Ir para Xangai como se tudo isso fosse quimera e como se não seguissem crepitando incertezas de mau-agouros dos os pés às almas de todos os brasileiros é menosprezar que as chagas abertas pelas noites de junho de 2013 e esgarçadas pelo impeachment de 2016 seguem abertas, vivas e precisam ser cauterizadas.
45% da população brasileira, no segundo mês do novo governo do presidente Lula da Silva, ainda acredita que as urnas que o elegeram em 2022 foram fraudadas mediante complô contra o presidente Jair Messias Bolsonaro. Isto não é ao acaso. A suspeição, a fragilidade e a insegurança seguem imensas desde junho de 2013 e, sobretudo, desde agosto de 2016. As tormentas brasilienses do 8 de janeiro de 2023 foram a mostra mais genuína dessa longa duração da crise iniciada sob a presidência de Dilma Rousseff e estressada com a derrota do capitão-presidente em 2022.
Olhando sociológica e politicamente bem de perto, os eventos que sucederam as noites de junho de 2013 acabaram com a marcha da redemocratização. Os pactos de sociabilidade, decência e responsabilidade nutridos pelos entusiastas da democracia brasileira desde a ditadura foram ali – e especialmente com o impeachment de 2016 e com a prisão de 2018 – rompidos.
O retorno do presidente Lula da Silva pode até ter “salvo a democracia” para aqueles que acreditavam, verdadeiramente, que o país estava à beira do “fascismo”, do “nazismo”, do “terrorismo”, do “genocídio”. Mas, mesmo que isso seja verdade, esse retorno, decididamente, não reabilitou a redemocratização.
Reabilitar a redemocratização envolve remoçar os pactos pela redemocratização. Um remoçar que depende da cooperação, principalmente, daqueles que, bem ou mal, por longos ou curtos períodos, guiaram a nação.
Que país é este onde os presidentes da República, homens e mulher, que tiveram o privilégio, a distinção e a honra de guiar esta belíssima nação, esse país-continente, essa sociedade transbordante de vigor e criatividade tratam-se por inimigos e não adversários políticos? Não se conversam, não se correspondem, não se unem pela grandeza do bem maior que é o próprio Brasil? Que país é este?
Todos os presidentes vivos precisam estar no país e cooperar para a sua reconstrução. Inclusive o capitão deve retornar. Como respeitar um cidadão que foi presidente da República e deixa 45% da população brasileira – ou seja, metade da população brasileira que se reconhece bolsonarista ou antiogovernoqueestáaí – em orfandade?
Lulistas, dilmistas, bolsonaristas – e também os partidários dos presidentes Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso – precisam se unir para reavivar a marcha da redemocratização. O exílio da presidente Dilma Rousseff em Xangai não auxilia nesse propósito maior.
Se tudo isso já não fosse o suficiente, é importante que se diga que a presidência de um banco é coisa para banqueiro, técnicos talentosos, diplomatas, gente importante e competente. O Brasil tem o privilégio de ter entre os seus nacionais o mais ilustre entendedor de BRICS do planeta que se chama Paulo Nogueira Batista Jr. Paulo Nogueira Batista Jr. possui todo o physique du rôle para assumir o posto em Xangai.
A cidadã Dilma Vana Rousseff também possui, por certo, todas as credenciais técnicas, políticas e diplomáticas para assumir a função. Mas a presidente Dilma Rousseff possui atributos mais importantes a defender. Do destino do Brasil depende a sua presença por aqui. Então, Senhora Presidente Dilma Vana Rousseff, por favor, não vá para Xangai.