Por Rudá Ricci, sociólogo, no X
Daqui um mês, Arthur Lira deixa a presidência da Câmara de Deputados. Ele foi mais um da sequência iniciada com Severino Cavalcanti que passou a assombrar o establishment desta casa parlamentar
Severino foi apenas um susto. Mas, logo depois, veio o bruxo que alteraria de vez não apenas a lógica de lideranças e poder na Câmara de Deputados, mas a relação com o governo federal: Eduardo Cunha.
Lira entra nesta sequência, dando mais um passo na direção da subversão da lógica entre os três poderes: avançou sobre os governos Bolsonaro e Lula, chantageou à céu aberto e enfrentou o STF.
A história revela problemas para os que deixam a presidência da Câmara de Deputados. O Metrópoles já publicou o fim que foi reservado Rodrigo Maia (presidiu a Câmara de 2016 a 2021), Aldo Rebelo (2005 a 2007) e o próprio Eduardo Cunha (que renunciou à presidência em 2016).
Este fio se baseia em matérias publicadas em 2023: “Arthur Lira, vida e obra”, de Fernando de Barros e Silva; “Arthur Lira: Quem é o líder do centrão”, publicada na InfoMoney; e o relatório “Arthur, o Fazendeiro”, de Luís Indriunas e Alceu Luís Castilho, no Brasil de Fato.
Comecemos pelo lado menos visível de Lira: o do agronegócio. Desde os 16 anos, relata, desenvolve atividades na pecuária. Lira segue o legado do coronelismo inaugurado como reação dos donos de terras e do “complexo rural” quando da emergência do Estado nacional.
Ocupar prefeituras e estatais por primos do deputado retroalimenta os negócios da família, que investe os lucros dos bois nas cavalgadas e vaquejadas eleitorais do clã no Agreste, segundo matéria do Brasil de Fato. E é desse caldo de cultura que aflora sua truculência política
O dossiê “Arthur, o fazendeiro” identifica 115 fazendas, que somam 20.039,51 hectares vinculadas à Lira, embebidas em casos de violações de direitos humanos, como a invasão das terras indígena Kariri-Xocó e despejo de uma família de camponeses
O dossiê revela, ainda, a criação de uma rede de prefeituras e consórcios intermunicipais que atuam em benefício do clã, em diálogo direto com as verbas federais: dos tratores às cavalgadas, das escavadeiras às vaquejadas protagonizadas por Arthur e seu filho Alvinho.
Lira é filho de Benedito de Lira, o Biu, velho político ruralista. De sua mãe vem a relação com uma tradicional família de fazendeiros e políticos de Alagoas, os Pereira. As famílias possuem, juntas, 17.037,10 hectares em Alagoas e 2.718,31 hectares no Agreste pernambucano
Seis fazendas são administradas pelos herdeiros de Adelmo Pereira — primo da mãe de Arthur — em São Brás (AL), às margens do Rio São Francisco. Os imóveis estão sobrepostos a 2 mil hectares da TI Kariri-Xocó, homologada por Lula em abril deste ano
A família vende os bois criados dentro da terra indígena para o frigorífico Dom Grill, fundado por um dos netos do patriarca. Esse gado é abatido em um matadouro público construído por outra parente, a ex-prefeita de Campo Alegre Pauline Pereira
A relação entre Codevasf e Arthur Lira vem de antes da entrada do primo Joãozinho na estatal. A companhia foi o veículo para o “tratoraço”, o braço agrário do orçamento secreto, que distribuiu R$ 3 bilhões em equipamentos superfaturados para os aliados do governo Bolsonaro
Enquanto os tratores e obras da Codevasf continuavam sendo entregues por Joãozinho, o presidente da Câmara fortaleceu as ações junto ao Consórcio Intermunicipal do Agreste Alagoano (Conagreste), comandado por dois aliados regionais — um deles, seu primo Teófilo Pereira.
Wilson de Lira Santos, primo de Lira, comanda o Incra estadual. A esposa de César, Livia Costa Saleme, foi secretária parlamentar de Biu no Senado. César Lira assumiu o órgão, em 2017, no governo Michel Temer
Lira prepara os filhos para a pecuária e a política, assim como fez seu pai. Arthurzinho, o mais velho, passa boa parte de seu tempo em Brasília, onde negocia verbas de publicidade através de sua agência, a Omnia360º.
As relações promíscuas entre família, política, órgãos públicos e achaques levou à várias denúncias e investigações. Uma delas, focou nas fraudes na compra de material escolar por prefeituras de Alagoas, estado de origem do clã Lira
Em abril de 2022, uma reportagem da Folha de S.Paulo revelou que o governo Bolsonaro havia destinado 26 milhões para que municípios alagoanos comprassem kits de robótica destinados à educação. Os recursos eram transferidos do FNDE via emendas de relator, controlados por Lira
Todas as sete cidades alagoanas contempladas tinham contrato com a mesma empresa sediada em Maceió, a Megalic, que superfaturava os kits em 420%. Os donos da Megalic, Edmundo Catunda e Roberta Lins, são próximos de Lira. Catunda tem um filho que é vereador em Maceió
A PF chegou a Luciano Cavalcante, uma espécie de faz-tudo da família Lira. Começou em 2003 como assessor parlamentar do deputado Benedito de Lira, o Biu, pai do atual presidente da Câmara. Em 2017, foi trabalhar com o filho Arthur, então líder do PP na Câmara
Segundo matéria da revista Piauí, o dinheiro que saiu do MEC, via emenda do relator, foi usado para pagar a estadia de Arthur Lira no Hotel Emiliano em São Paulo.
Imagine, então, a relação entre pressão e chantagem de Lira junto ao governo federal com a manutenção das emendas que irrigam seu poder regional. Imaginem, ainda, o efeito da ação do ministro Flávio Dino contra a falta de transparência e rastreabilidade no uso dessas emendas
Arthur Lira, lembremos, foi fiel a Eduardo Cunha até o fim. Com Cunha, Lira aprendeu a manejar o baixo clero e a chantagear, negociando cargos e vantagens no governo federal.
A promiscuidade na relação entre parlamento e executivo marcam a identidade dessa dupla que comandou e comanda a Câmara de Deputados. Mais: os dois vinculam seu poder institucional com relações pouco nítidas com o alto empresariado do centro-sul brasileiro e o agronegócio
Em 2015, Lira chegou a comandar a CCJ, comissão mais importante da Casa. Como presidente, Lira manteve o apoio a Eduardo Cunha durante o processo de cassação, inclusive emitindo parecer favorável ao investigado no processo por quebra de decoro na CCJ
Em de 2023, Lira foi reconduzido à presidência da Câmara dos Deputados, com 464 votos de 509 parlamentares que votaram na sessão de abertura dos trabalhos pela 57ª Legislatura. O apoio de Lula revelava o poder de barganha em punho
Lembremos que, durante a gestão Bolsonaro, Lira chegou a ser favorável a projetos polêmicos, como a PEC do voto impresso e a que dava maior poder ao Congresso sobre o Conselho Nacional do Ministério Público
Lira apoiou a candidatura de Kassio Nunes Marques para o STF em troca da gestão do orçamento secreto, criado originalmente para que o Legislativo pudesse fazer pequenas correções na proposta orçamentária e otimizar os gastos de suas bases eleitorais
Um poder dessa magnitude tem um preço. Preço que Lira resolveu enfrentar nos seus últimos 30 dias como presidente da Câmara.
Não estava nos seus planos enfrentar Flávio Dino. É aqui que se situa seu maior embate nesses dias. Possivelmente, considerado como confronto de vida ou morte.