Por Sara Goes, colunista, no 247
O evento do PL em Fortaleza, realizado em 2025 às vésperas do mês de São João, marcou uma virada simbólica na disputa ideológica e digital pelo Nordeste. Jair Bolsonaro, André Fernandes e Rogério Marinho se encolheram no palco diante da presença de representantes do Google, da Meta e do CapCut. A cena falava por si: era a fusão entre o marketing digital e o marketing de massas, entre púlpito e algoritmo. A extrema direita exibia seu corpo político, as big techs, seu novo hospedeiro.
Não era aliança, era endossimbiose (aliança canibal). O PL entregava capilaridade, território e organicidade. As plataformas ofereciam alcance, escudo e aparência de legitimidade. Não atuavam com a extrema direita como abstração ideológica, mas com o PL como estrutura viva, funcional e moldável às exigências da disputa eleitoral.
E enquanto os algoritmos organizam o assédio, o território vai sendo ocupado por outra via. Na mesma lógica silenciosa que une púlpitos e plataformas, chegam ao Nordeste projetos de infraestrutura digital pesada, travestidos de inovação. Data centers se instalam em áreas estratégicas como o complexo portuário de Pecém, atraídos pelo sol, pelo vento e pelos cabos submarinos, mas sem qualquer compromisso com o futuro da região. A promessa de modernização oculta o velho padrão de dominação: a colonização digital. Eles tomam a energia, ocupam o solo, esgotam os recursos, e deixam pouco ou nada em troca.Em Fortaleza, o número de data centers passou de três para treze em apenas dois anos, quadruplicando desde o início da pandemia. Onze deles estão cravados na capital, dois no entorno, formando um cinturão tecnológico que promete modernidade. Como mostrou matéria do jornal O Povo, essa infraestrutura se alimenta da localização estratégica, da energia barata e da ausência de contrapartidas sociais. São estruturas que exigem qualificação de ponta, mas oferecem pouco acesso à população local, que segue à margem das decisões. O Ceará virou rota digital global, mas o povo cearense ainda luta para acessar seus próprios direitos.
Desde os primeiros séculos da colonização, o povo nordestino já dava provas de sua disposição para resistir à exploração. Em 1684, no Maranhão, colonos se revoltaram contra a Companhia de Comércio do Estado do Maranhão, criada pela Coroa para intermediar trocas entre a colônia e a metrópole. Na prática, a Companhia impunha monopólios, vendia caro, comprava barato e agravava a fome. Liderados pelos irmãos Beckman, os revoltosos tomaram São Luís, expulsaram os agentes da Companhia e estabeleceram um governo provisório. Foi uma reação firme contra promessas de progresso que, na prática, secavam a terra e aprisionavam o povo.
Séculos depois, datacenters (palavra junta ou separada?) avançam com a mesma lógica: chegam sedentos, consomem em silêncio não só energia, mas também a água da região que sofre a séculos com as secas prolongadas,e deixam quase nada em troca. Como lembrou Vladimir Nunan, no jornal O Povo, cidades como Mesa (EUA), Amsterdã (Países Baixos) e o Vale do Elqui (Chile) já reagiram. Em Mesa, a Meta foi impedida de expandir um datacenter que usaria mais de 1,5 milhão de litros de água por dia, em plena seca no deserto. Em Amsterdã, a prefeitura decretou moratória para novos centros pelo alto consumo de energia e água. No Chile, o governo reavaliou concessões ao Google para proteger seus aquíferos.
Se desertos e capitais do Norte global estão dizendo não, por que aceitarmos calados no semiárido? O Nordeste não é colônia digital. Que a memória dos Beckman nos lembre: quando a promessa seca a terra, é tempo de resistência.
Não há consulta pública, não há escuta às comunidades, não há transparência. As reuniões acontecem entre ministros e multinacionais, e as políticas são desenhadas como se o Nordeste fosse apenas um território disponível, uma plataforma em branco. O Nordeste, mais uma vez, é empurrado para o papel de hospedeiro útil, mas descartável. É uma nova invasão, não pela força bruta, mas pela força simbólica. Não pelo voto, mas pelo algoritmo. O Nordeste virou alvo preferencial porque é a trincheira mais antiga da rebeldia popular brasileira. Quem dobrar o Nordeste, dobra a espinha dorsal do povo brasileiro.
Desde 2018, a região foi resistente: todos os nove estados votaram contra Bolsonaro. Nem com o auxílio emergencial a adesão cresceu. O PL entendeu: não precisa de maioria popular, só precisa da institucional. Daí as caravanas, os pactos com igrejas, os grupos de zap, os acordos com as big techs.
A Rota 22, nome que parece de programa policial da televisão cearense, mas na verdade é a operação do PL leva Bolsonaro a cidades pequenas do Nordeste encenando apoio popular para viralizar nas redes, enquanto fecha acordos com prefeitos, rádios e igrejas, percorre os interiores como um vento de fake news embalado em promessas morais e vídeos encenados de acolhida espontânea. Uma encenação meticulosa para parecer adesão popular.
Ao mesmo tempo, entra em cena uma segunda frente: o pesquisismo. Um bombardeio diário de gráficos e manchetes que não analisam, mas induzem. A cada nova oscilação nos índices de aprovação de Lula, se projeta a ideia de que a resistência nordestina está murchando e com ela, o fôlego do Brasil. O pesquisismo funciona como arma simbólica: espalha a dúvida, sabota a esperança, cultiva a sensação de que o Nordeste está se rendendo, e que o resto do país deve entrar em pânico.
O ataque mais profundo é sempre o que vem de dentro
O golpe mais duro não vem de longe. Ele vem de quem deveria estar do nosso lado. Não é de hoje que alguns nordestinos se colocam a serviço de projetos que atacam a própria terra. Gente que troca origem por poder, que usa o sotaque como caricatura. O bolsonarismo percebeu rápido: para entrar no Nordeste, precisava parecer conosco e ter de aliados locais. Precisa de rostos familiares para empurrar pautas que nunca nos serviram.
Arthur Lira operou como força discreta em Alagoas, garantindo o poder mesmo sem aplauso popular. Capitão Alden, na Bahia, além de carregar a pauta moralista, perseguiu diretamente o Consórcio Nordeste. Ciro Nogueira, no Piauí, transformou o centrão em ponte direta para o bolsonarismo raiz. Maranhãozinho atua como elo entre o autoritarismo e as máquinas municipais. Marinho, o tecnocrata da destruição. E Ciro Gomes, mesmo fora da órbita bolsonarista, confundiu o povo sobre quem é adversário e quem é inimigo. Mas há momentos em que o ciclo se rompe: a prisão de Gilson Machado em pleno São João, depois de anos caricaturando o povo nordestino, trouxe alívio. É pra mangar de pé!
O sul do sul global
Enquanto Brasília sabotava, o Nordeste se fez governo. O Consórcio Nordeste não foi só uma reação à pandemia, foi um ensaio de soberania. Criado em 2019, tornou-se trincheira de políticas públicas com base científica, cooperação internacional, dados compartilhados e decisão coletiva. Enquanto Bolsonaro zombava da ciência, os governadores bancavam a vida. Compraram insumos em conjunto, tentaram adquirir vacinas como a Sputnik V antes mesmo do Ministério da Saúde se mover. Criaram comitê científico com Nicolelis, firmaram acordos com a China e a Rússia. Foram, de fato, um ministério da saúde do Nordeste.
A perseguição veio justamente porque funcionou. Mas o que ele representava era maior, um modelo de federalismo que não se ajoelha ao centro. O consórcio provou que o Brasil pode funcionar sem as bênçãos de Brasília e que o Nordeste pode liderar sem pedir licença.
A disputa por hegemonia não parou aí. As rádios comunitárias viraram alvos. Desde 2018, foram pressionadas, ameaçadas e invadidas. A redução drástica das outorgas, a compra de concessões por igrejas e políticos, o assassinato de comunicadores e a tentativa de deslegitimar rádios em 2022 mostram que o ataque foi real. Mas rádios como a Atitude Popular resistem fazendo do estúdio trincheira com apoio do FNDC e alianças com universidades.
Enquanto o PL produz kits para TikTok, as rádios populares gravam assembleias, chamam pelo nome, debatem em círculo. São mais que meio, são modo de existir o interior do Nordeste. E o que vale para o ar, vale para os dados: o mesmo interior é alvo de vídeos com IA e algoritmos programados entre Brasília e o Vale do Silício. Mas, atenção Lula, ainda escuta quem fala com verdade.
A trincheira digital
A resistência nordestina não está só na memória, está no código. Hackerspaces, softwares livres, coletivos como o Felicilab e redes como a Colivre desafiaram a hegemonia algorítmica. O Nordeste codificou sua própria linguagem digital: desapressada, partilhada e insurgente.
Enquanto isso, um outro tipo de infraestrutura digital cresce no Ceará. São estruturas frias que concentram dados, energia e decisões. No subsolo, o futuro da computação em nuvem; na superfície, o povo nordestino ainda luta por conectividade, por formação, por soberania sobre o que lhe é expropriado.
O Consórcio Nordeste não ficou atrás. Criou o Observatório do Nordeste como projeto estratégico de inteligência regional, promovendo oficinas com o laboratório Íris e avançando na estruturação de uma base comum de dados públicos. Embora atualmente estejam inativos, esses esforços sinalizaram um caminho possível de soberania informacional. Já o projeto Nordeste Conectado segue ativo, expandindo redes de fibra ótica em parceria com a RNP e instituições públicas, especialmente no interior. Mais do que infraestrutura, trata-se de soberania digital em disputa.
É preciso massafeirar os bits e criar zonas autônomas de existência. Em julho, o chão digital se move. Brasília recebe quem não aceita mais servir de hospedeiro para estruturas que nos expropriam. Ali, entre rádios e roteadores, nasce a chance de um plano que pense o país desde o seu sul do sul. Não se trata de barrar a tecnologia, mas de impedir que ela nos seja imposta como um novo tipo de colonialismo, em que nossa terra fornece o chão, a água e a energia, mas não decide o que será armazenado, nem a quem isso vai servir.
E em 2026, a batalha será também nas calçadas, na feira, no whatsapp, no microfone. Quem dominar essas trincheiras não vai só ganhar uma eleição, vai impedir que apaguem uma cultura, pois querem que a gente esqueça que não somos subprodutos do Brasil. Somos sua origem rebelde, sua pergunta mais antiga, sua lembrança mais incômoda. Usam nossos nomes, nossa fé, nossa música, mas não sabem o que fazer com nosso silêncio que observa, nossa gaitada, nossa inteligência popular.
Aqui, a gente lembra quem nos tratou como estorvo, quem sabotou a vacina, quem quis apagar nossa voz dos mapas. Quem debochou da nossa gente. “Coitado do negro, coitada da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino. Coitado do piauiense” . Coitado deles! Pois nos lembramos de quem cuidou de nós quando o governo nos sabotou. Eles querem nossos dados, nossas crianças, nossas eleições. Querem nossa obediência vestida de gratidão. Mas o que temos a oferecer é desobediência vestida de projeto de soberania. O Nordeste não será domesticado por código, corte ou cortejo. Em 2026, vamos de novo. Com rádio, com meme, com livro, com live, com xote, com megafone. Somos a nata do lixo, o luxo da aldeia, o sul do sul global.