Na Venezuela, notas tristes e frágil esperança

Os fatos, o cenário geopolítico e uma saída

Por Antonio Martins, editor do Outras Palavras

O jornalismo obriga a dar também as más notícias e a analisar o que nos incomoda. Em janeiro de 2025, Nicolás Maduro espera assumir seu terceiro mandato como presidente da Venezuela. As tentativas dos Estados Unidos de proclamar um “vencedor” estão entre o arrogante e o patético. Em respeito aos princípios de soberania dos Estados e não-ingerência externa, o mais provável é que Brasil, Colômbia e México sejam levados, em alguns dias ou semanas, a reconhecer o novo governo. Mas as eleições de 28/7 não foram limpas e Maduro não obteve a maioria dos votos. Mais grave: pode estar em curso um processo de “orteguização” do regime, de deriva autoritária semelhante à vivida pela Nicarágua. Nesse caso, a estrela de esperança do chavismo terá se apagado, e a América Latina perderá mais uma oportunidade de livrar-se do atraso e da herança colonial.

Três fatos levam a constatar a ilegitimidade do resultado eleitoral. O primeiro é a ausência do dado fático mais elementar em qualquer apuração: o resultado urna a urna. A ex-presidente argentina, Cristina Kirchner, destacou este vazio, ao se dirigir a Maduro, no último sábado (3/8). “Peço-lhe (…) pelo próprio legado de Hugo Chávez que publique as atas”. Não se trata de inverter o ônus da prova, nem de reivindicar a formalidade do papel timbrado do Estado das atas. Faltam não apenas estes documentos, mas a própria realidade que eles representam.

Na noite da eleição, o presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela, Elvis Amoroso, apresentou o que disse ser um resultado parcial – porém “irreversível” – do pleito. Segundo ele, até aquele instante, apuradas 80% das urnas, Nicolas Maduro tinha 5.150.092 votos; Edmundo González, seu principal adversário, 4.445.978; os demais postulantes, juntos, 462.704. Mas de onde vinham estes números? Mesmo numa eleição de DCE, nenhum cômputo é aceitável se não se apresentam os resultados das urnas que compuseram aquele total; porque uma soma não se sustenta sem suas parcelas. Passados oito dias do pleito – e ao contrário do que ocorreu em todas as eleições venezuelanas anteriores sob o chavismo – o CNE continua sem divulgar o resultado de uma única urna. Na sexta-feira (2/8), surgiu uma nova “parcial”, que abrangeria 97% dos votos e daria a Maduro 51,95% dos votos, contra 43,18% de González. Mas a ausência dos fatores, no suposto “total”, continuou a gritar. Aparentemente, como se verá, o número foi lançado apenas para encobrir inconsistências flagrantes na “parcial” anterior.

O segundo fato extravagante foi o afã em oficializar um resultado e encerrar o processo eleitoral, quando ainda não havia condições mínimas para isso. Na segunda-feira (29/7), com base na suposta “irreversibilidade” dos primeiros números, Elvis Amoroso foi adiante e proclamou reeleito Nicolás Maduro. A aritmética elementar demonstra que não podia fazê-lo, conforme apontou, na revista Aporrea, ligada à esquerda, o cientista político Juan Barreto, articulador do partido venezuelano Redes e ex-prefeito (chavista) de Caracas.

Segundo os próprios dados do governo, com 80% das urnas apuradas, estavam computados, até aquele momento, 10.058.774 votos. Como 12.352.042 pessoas compareceram às urnas eletrônicas, faltava computar 2.393.268 votos. Mas a vantagem entre Maduro e González era de apenas 704.114 sufrágios, destacou Barreto. Ou seja, o número de votos ainda por apurar era 3,39 vezes maior que a vantagem atribuída a Maduro. A suposta dianteira, portanto, seria perfeitamente reversível. Que se pretende, nestas condições, com a proclamação precipitada de um “vencedor”? Como responderíamos, os partidários de Lula, se em novembro de 2022 Jair Bolsonaro agisse da mesma maneira?

O terceiro sinal de alerta é a inconsistência do principal argumento utilizado até agora pelo governo, para justificar o sumiço dos números urna a urna. O CNE teria sido vítima de um vasto ataque de hackers na noite das eleições. A empresa russa Kapersky, especializada em segurança na internet, monitora os ataques deste tipo em todo o mundo, e nada registrou no período aludido. Mas o exame do processo venezuelano de contagem dos votos torna a alegação mais absurda.

Assim como no Brasil, as urnas venezuelanos são 100% eletrônicas (adicionalmente, o voto é impresso numa cédula de papel, que o eleitor confere e deposita numa urna física, para possível auditagem posterior). Mas Juan Barreto, o ex-prefeito de Caracas, explica que a apuração não é feita pela internet, exatamente para evitar interferências externas. Cada mesa eleitoral extrai, de sua urna, o resultado, ao fim dos trabalhos; e o encaminha, por meio físico, a um local de totalização. Além disso, os mesários e fiscais imprimem uma ata e a tornam pública.

Em teoria, o sistema é inexpugnável. Como os números de cada urna estão gravados em suportes físicos, é possível recontá-los a qualquer momento, bastando reprocessar a soma. E se, em caso extremo, os registros eletrônicos forem danificados, há sempre o recurso de recomputar, numa planilha Excel, os dados inscritos nas atas de papel. Por que, passados oito dias, nada disso foi feito pelo CNE?

O repórter Juan Diego Quesada, do jornal espanhol El País, registrou a noite em que algo se perdeu. Os observadores do Centro Carter comparecem há décadas às eleições venezuelanas. Em todas as ocasiões anteriores, atestaram sua lisura — o que lhes valeu o ódio dos conservadores. Dessa vez foi diferente. Jennie K. Lincoln, a chefe do grupo de observadores da instituição impacientou-se durante as horas que sucederam o fechamento de urnas, ao dar-se conta de que os resultados demoravam muito a aparecer.

Horas antes, relata o repórter, dera-se algo inusitado em parte importante das urnas. De forma inédita, os resultados processados ao final da votação não foram compartilhados pelos funcionários do CNE. Desapareceu a possibilidade de verificação independente do total. Apenas o CNE poderia oferecê-lo e recusa-se até agora a fazê-lo.

Por isso, o Centro Carter emitiu, em 30/8, nota em que sustenta: “o pleito não atende padrões internacionais de integridade eleitoral e não pode ser considerado democrático”. A oposição apresentou, num site próprio, o que diz ser a totalização de 81,7% das urnas. Segundo seus números, Edmundo González venceu com 67% x 30% dos votos, e uma margem de 3,915 milhões de votos. Este resultado não pode ser reconhecido, inclusive porque os que o produziram têm larga trajetória de falsificações e golpismo.

Mas o mais constrangedor para o governo é que, na contagem que os oposicionistas alegam ser real, os dados surgem a partir de uma soma de parcelas. Além do resultado final, há a contagem por estados, municípios, paróquias, escolas e urnas . Nas urnas computadas, pode-se ter acesso, por meio de um botão verde, no topo da página, à digitalização da ata eleitoral.

Por fim, há indícios factuais e estatísticos de que a “parcial” anunciada pelo presidente do CNE no domingo (28/7) – ou seja, os que levaram à proclamação do “resultado”, um dia depois – foram sacados da cartola. A primeira observação – factual – a este respeito foi feita, na própria noite das eleições, por Enrique Márquez, candidato à presidência apoiado pelo Partido Comunista da Venezuela (PCV) e pelo Redes. Está disponível em vídeo. Segundo Márquez, o resultado lido pelo presidente da CNE, sobre a suposta parcial de 80% das urnas, não foi impresso na sala de totalizações, diante dos fiscais dos partidos, como determina a lei. “O boletim não se produziu ali. Não sei de onde o senhor Amoroso tirou este papel com o suposto resultado”, diz Márquez.

Quatro dias mais tarde (em 1º/8), o repórter Kiko Llaneras publicaria, em El País,um estudo assombroso. Ele demonstrou que, a crer na versão do CNE sobre a primeira “parcial”, deu-se na Venezuela uma anormalidade estatística só possível uma vez a cada cem milhões de eleições. É que, ao extrair, a partir dos números divulgados por Amoroso, os percentuais de cada candidato, chega-se, em todos os casos, a resultados exatos até a quinta casa decimal. Maduro tem 51,20000%; González, 44,20000%; e os demais, somados, 4,60000%. A inexatidão só surge na sexta casa decimal, como mostra a tabela abaixo.

A conclusão de Llaneras, tristemente difícil de desmentir, é: muito provavelmente, “o número de votos apresentado pelo boletim do CNE é uma cifra calculada a partir de porcentagens. Partindo do total de votos (10.058.774), tomou-se um percentual redondo, como os 51,2% de Maduro e calcularam-se seus votos. A conta resultou em 5.150.092,288. Como é absurdo atribuir decimais a votos, deixaram-no com 5.150.092. Por isso, as porcentagens são quase redondas – mas não por completo, só até o sexto decimal”.

Levando em conta não apenas o cálculo estatístico, mas tudo o que se viu até agora, pode-se afirmar que as probabilidades de ele estar certo são de 99,999999%…

“Que é o roubo de um banco, comparado à fundação de um banco?”, perguntou Bertolt Brecht? Que é um vazio de atas, ou talvez uma fraude eleitoral, diante do genocídio dos palestinos, da ameaça de guerra nuclear implícita na expansão da Otan contra a Rússia e a China ou das condições miseráveis a que as políticas neoliberais continuam a condenar bilhões de seres humanos? Esta última pergunta parece estar subjacente a um artigo sobre as eleições venezuelanas redigido pelo cientista político Manuel Domingos, o ex-deputado José Genoíno e o ex-ministro da Ciência e Tecnologia Ricardo Amaral – e publicado também por Outras Palavras. Nele, os autores não se detêm no exame do processo eleitoral venezuelano. Seu foco é outro: o domínio geopolítico do Ocidente está em crise. Ha chance de grande virada à frente. Uma Venezuela – detentora das maiores reservas de petróleo do planeta – submissa aos EUA pode retardar ou frustrar este processo.

O argumento é digno e muito relevante. Ocorre, porém, que as considerações geopolíticas não deveriam ofuscar o exame dos problemas políticos que afetam as pessoas em carne e osso; nem evitar que elas sejam protagonistas conscientes de seu destino. E ocorre, também, que o governo Maduro parece ter adotado, diante do impasse eleitoral, uma postura que aliena os venezuelanos.

O problema é que as atitudes do governo Maduro o afastam cada vez mais de uma oposição real aos projetos do capitalismo. Após o anúncio de um “resultado” que é, como se viu, muito questionável, houve protestos populares – em especial no domingo (28/7) e na segunda-feira seguinte. A grande maioria deles foi pacífica. Houve, como é quase inevitável nesses contextos, abusos e provocações. Ao invés de tentar apaziguar estas manifestações, abrindo diálogos políticos, o governo tratou de criminalizá-las.

Entre onze e vinte pessoas já morreram, vítimas de repressão. Além disso, para tentar frear os atos, o governo recorreu a prisões em massa de manifestantes. Já são 2 mil detidos, segundo o próprio Maduro. No sábado (3/8), o presidente anunciou sua intenção de preparar dois presídios de segurança máxima para mantê-los encarcerados. “Temos 2 mil presos capturados, e vão para (os presídios) Tocorón e Tocuyito. Máximo castigo, justiça. Desta vez, não haverá perdón, desta vez o que haverá é Tocorón”.

Em todo o episódio, desde o início, a narrativa do governo esteve marcada pelo esforço de rotular os que contestam o resultado eleitoral como “terroristas” ou “ciberterroristas”. No domingo, ao reunir-se no Palácio de Miraflores com um grupo de comandantes militares, este discurso vitimista e ultraconspiratório atingiu o ápice. Paramentado como Supremo Comandante, o presidente assegurou ser parte de uma “luta espiritual entre o bem o mal”, em que combateria uma “seita satânica” comandada por Elon Musk – o qual teria “símbolos diabólicos em seu peito”. A fala parece inacreditável. É fácil imaginar o tipo de combate que se espera ao atiçar os generais contra tal tipo de “inimigo”.

Parte da cruzada de Maduro volta-se (ao contrário do que se costuma imaginar no Brasil) contra a esquerda. O fim do desabastecimento e da hiperinflação na Venezuela tem sido alcançado por meio de dolarização da economia, aumento vertiginoso da desigualdade e devastação dos serviços públicos. Alguns podem argumentar que a correlação de forças impede, no momento, outra alternativa.

Mas não é plausível aceitar que a repressão aos antigos chavistas e à juventude que protesta precise fazer parte do processo. É o que vem acontecendo. Num texto publicado sábado (3/8), no site La Izquierda Diario, o grupo Barricada – Juventude Revolucionária Anticapitalista – exige a libertação de todos os “presos políticos”, entre os quais haveria 74 adolescentes, como María Méndez, atleta da seleção feminina de futebol. Também afirma que, se nas manifestações oposicionistas houve “um forte componente popular e de jovens” é porque estes estão “fartos dos últimos anos de crises e políticas antipopulares do governo de Maduro”. Dias antes, em 31/7, mais de 160 ativistas, pensadores e personalidades venezuelanas (entre os quais diversos ex-ministros de Hugo Chávez) reivindicava “a auditoria eleitoral dos resultados do 28-J, como sugeriram países como o Brasil e o Chile, com a participação dos únicos observadores internacionais fiáveis que participaram do processo: os do Centro Carter e a Missão da ONU”.

Poderão a Venezuela e o processo de transformações desencadeado há mais de três décadas pelo chavismo sair, de algum modo, fortalecidos deste processo e de seu impasse? Em 1º/8, uma contribuição publicada no site Aporrea sugeriu um caminho improvável, mas não impossível. Javier Biardeau lembrou que a Constituição venezuelana de 1999, escrita por uma Constituinte convocada por Chávez, prevê (assim como a revogação popular dos mandatos) o instrumento da verificação cidadã dos resultados eleitorais. “Neste momento crucial para o país, em que é preciso enfrentar a violência e qualquer fato que ameace o pleno exercício dos direitos humanos”, diz ele, “não bastam o CNE e a [eventual] atuação do Tribunal Superior de Justiça. É preciso que a sociedade se encarregue da defesa da soberania popular, que não pode ser transferida a nenhum poder instituído. O poder original reside no povo”.

Certamente, um acordo em que a sociedade civil e os movimentos sociais tenham papel ativo não é a alternativa mais fácil no momento. Mas parece ser a única capaz de preservar, na sinuca de bico em que a Venezuela as meteu, saídas favoráveis dos pontos de vista geopolítico e político.