Por Denise de Assis, jornalista, no 247
No contexto da crise das emendas parlamentares, que tem mobilizado todo o Congresso, mas particularmente a Câmara dos Deputados, desde o dia 23 de dezembro, quando o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu o pagamento de recursos da ordem de R$ 4,2 bilhões em emendas de comissão, alegando falta de transparência, pipocam exemplos de irregularidades nas mais variadas regiões do país. Em Santa Bárbara do Tugúrio, município de apenas 4.208 habitantes, no interior de Minas Gerais, o Ministério Público, por meio do juiz de Primeira Instância da 2ª Vara Cível da Comarca de Barbacena, Marcos Alves de Andrade, impetrou liminar sustando a realização de um show da cantora Joelma, no valor de R$ 500 mil.
A ação civil pública que cancelou o show tem data de 19 de dezembro, antes mesmo da ação do ministro Dino. Chamou a atenção da coletividade o fato de a mesma artista ter se apresentado no município em 2022, pela quantia de R$ 265 mil, e agora ter o seu cachê praticamente dobrado.
Nesta segunda-feira (30/12), a Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu um parecer sobre a decisão do ministro Flávio Dino. No documento, a AGU recomenda que o governo federal não efetue os repasses das emendas no valor de R$ 4,2 bilhões, cuja liberação havia sido aprovada anteriormente. A AGU pede uma interpretação mais cautelosa da decisão do ministro. Enquanto isso, em Santa Bárbara do Tugúrio, o juiz Alves de Andrade se antecipou, diante do valor do cachê de Joelma, sob pena de a empresa que representa a artista ter de pagar multa no mesmo valor do contrato.
O município de Santa Bárbara do Tugúrio, no interior de Minas Gerais, é uma região originalmente habitada por indígenas puris, coroados e carijós. Esses povos teriam migrado para a região depois de conflitos com goitacás e tamoios, que os expulsaram do litoral. No século XVIII, Fernando José de Almeida e Souza e sua esposa, Bárbara Marcelina de Paula Correia, vindos de São João Del Rei, se fixaram em Barbacena e construíram uma fazenda que denominaram Tugúrio, em região próxima, dando origem à pequena cidade.
O juiz determinou a não autorização, não permissão “para a realização do show artístico da cantora Joelma, que tinha por objetivo comemorar o 63º aniversário do Município de Santa Bárbara do Tugúrio, sob pena de multa no valor integral do contrato, acrescido de juros moratórios e correção monetária, caso ocorra o evento; além de incursão em crime de desobediência e ato atentatório à dignidade da jurisdição”.
Como fundamento, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais alegou: "No ano de 2022, o Município de Santa Bárbara do Tugúrio efetuou a contratação da cantora Joelma, através da empresa J Music Editora e Produção Artísticas LTDA, pelo valor de R$ 265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil reais). Conforme então apurado no curso do Inquérito Civil n° 02.16.0056.0009554/2022-81, naquela época de 2022, foi constatado superfaturamento na contratação do show artístico, sendo verificado um ágio de aproximadamente R$ 145.000,00 (cento e quarenta e cinco mil reais), em se considerando o valor médio da hora de shows realizados pela mesma cantora, na mesma época”.
O juiz Alves de Andrade justificou a Ação Civil Pública por “Ato de Improbidade Administrativa n.º 5008239-57.2024.8.13.0056, onde é buscado o ressarcimento do erário pelo dano acima quantificado, bem como aplicação de outras penalidades, ação essa sub judice".
A autoridade demonstrou surpresa com o fato de “em novo ato surpreendente”, o Município de Santa Bárbara do Tugúrio anunciar e contratar “nova apresentação da mesma artista". E salienta que “ainda que considerada a inflação oficial, a contraprestação para realização do referido show ainda está muito acima do valor anteriormente contratado para a mesma artista”.
Por fim, aduz: "Não menos importante, ainda, é salientar que o Município de Santa Bárbara do Tugúrio não se dignou sequer a alimentar em tempo real seu Portal da Transparência", conforme certidão ora anexada, o que impediu que o Ministério Público tivesse acesso ao inteiro teor do processo de inexigibilidade de licitação ou mesmo ao termo do contrato 079/2024, limitando-se a publicidade até então conferida ao extrato estampado alhures".
Em seu despacho, o juiz ressalta que o município teria autonomia para realizar shows que proporcionassem lazer para os moradores, mas dentro das regras da probidade e da legislação pertinente.
“Entendo que a valoração/precificação de cachê de um artista é influenciada por diversas questões, dentre elas o alcance de suas obras artísticas. É cediço que a artista em comento tem um longo histórico de apresentações, sendo reconhecida nacionalmente. Ocorre que a mudança súbita de praticamente o dobro do valor em pouco tempo não se justifica, considerando o público-alvo para o show a ser realizado, bem como, conforme documentos juntados, a artista ficou afastada durante um tempo por questões de saúde. Considerando que no momento ainda está voltando aos palcos, o valor aceito pelo município mostra-se demasiadamente alto. Cumpre asseverar que o município de Santa Bárbara do Tugúrio é pequeno, com pouco mais de 4.200 habitantes”.
O juiz se vale do argumento que norteou a decisão do ministro Flávio Dino: a falta de transparência. “Além disso, a ausência de transparência quanto ao processo executado na contratação, a princípio, enseja dúvidas acerca da legalidade da mesma, havendo indícios de irregularidades, e considerando que a não concessão da tutela pleiteada nesta fase poderá causar danos e prejuízos ao erário, entendo que deve ser concedida a liminar pleiteada”.
E decide: “Arbitrar a multa de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) em razão de descumprimento desta decisão aos réus, extensiva ao chefe do executivo municipal de Santa Bárbara do Tugúrio, devendo o mesmo também ser intimado no mesmo mandado em que for citado e intimado o município réu, além da publicação no órgão oficial do Poder Judiciário”.
Além de intimar “por mandado, imediatamente, com as advertências legais, o município réu, através de seu representante legal, no caso seu prefeito municipal, bem como este, para que tomem ciência desta decisão”.
Esse, certamente, é apenas o início de uma enxurrada de casos que virão à tona no curso das investigações.