Por Sara Goes, jornalista, no 247
Bolsonaro morreu. Ele agora é um corpo-espetáculo. Internado, entubado, costurado por câmeras, tubos e bisturis, ele não apenas assina uma intimação do Supremo Tribunal Federal: ele performa. Muniz Sodré nos lembra que o grotesco não é apenas o feio: é o que rompe, deforma e fascina. É aquilo que, ao exibir o repulsivo, captura o olhar. E Bolsonaro sabe disso. Seu corpo, inflamado e exibido, torna-se mídia e mensagem.
É preciso entender essa operação como parte de um dispositivo maior. O bolsonarismo, como construção simbólica, funda-se numa estética da excrescência, numa comunicação que seduz pela abjeção. A cena do leito de hospital não é exceção, é um método. Como nos ensina Umberto Eco, o grotesco é aquilo que, ao mesmo tempo, repugna e fascina. Ele rompe com a forma clássica da beleza para criar novos critérios de percepção. Bolsonaro entende isso intuitivamente. Por isso, engana-se quem acha que Bolsonaro busca empatia do país. O que ele busca é fidelização. Seu corpo, cheio de pus e arrotos, é um altar escatológico, onde a dor não é silenciada, ela é amplificada.
Mas essa manipulação do corpo como signo de sofrimento não nasce agora. Alexandre Barbalho, em seus estudos sobre a construção do imaginário nordestino, analisa como os corpos fragilizados pela seca de 1877 no Ceará foram instrumentalizados como ícones de um Nordeste miserável, dependente, permanentemente carente de salvação externa. Aqueles corpos magros, famintos, despidos, tornaram-se símbolos de um território estigmatizado. Bolsonaro, ciente ou não, repete essa estratégia: faz de seu corpo adoecido um campo de batalha simbólico, uma vitrine daquilo que diz ser vítima, do “sistema”, da “justiça”, da “mulher oficial com intimação”.
Bolsonaro morreu e se tornou um sintoma.Ele é um corpo em permanente sofrimento, cuja inflamação não busca cura, mas cliques. Ao gritar com uma oficial de justiça, mulher e agente da ordem, o ex-presidente não apenas confronta o Estado: ele encena sua abjeção diante do feminino institucional, da “garota de recados de Moraes” Seu grito é menos contra a ordem do que pela reafirmação de seu lugar grotesco na história.
Em plena guerra cultural, onde a disputa se dá no campo dos afetos e das imagens, o mártir putrefato é uma arma poderosa. Gaze, bile, flatulência: tudo vira signo, tudo é viralizável. O grotesco é estratégia, é uma sebosidade que prega, é feiura que engaja. A decomposição, aqui, não é efeito colateral, ela é uma linguagem.
Bolsonaro morreu e apodreceu. Mas ele apodrece ao vivo para que saibamos que está entre nós, sofrendo, diz ele, por nós. Não por amor, mas sim por saber que a gastura, como pode ser uma forma de poder. E que o corpo doente, tal como o da seca de 1877, ainda é arma de guerra, simbólica, política e grotescamente eficaz.
Bolsonaro morreu e o mundo, tal como o conhecíamos, também. O que vem agora é outra coisa. Uma nova ordem decrépita, povoada por monstros e doenças emocionais. Talvez Trump tenha sido aquele a desferir o golpe fatal naquilo que restava de civilidade, desmoralizando o multilateralismo e esvaziando de sentido a ONU, a OMC e a OMS. O que vamos reconstruir, ainda não sabemos. Mas já que a putrefação virou método, que a excrescência virou estética e que o seboso virou herói, que pelo menos façamos do corpo em decomposição de Bolsonaro um adubo. Que dessa lama brote enfim de novo uma vida que preste.