Artista carioca preso mais de 20 vezes pela polícia. Conheça sua história

A perseguição policial, o pandeiro e a força do samba: a vida de João da Baiana

João Machado Guedes, conhecido como João da Baiana, foi preso mais de 20 vezes pela polícia do Rio de Janeiro no início do século XX. Seu crime? Perambular pelas ruas da capital da República com um pandeiro na mão. Filho de Perciliana Maria Constança, uma quituteira conhecida como "tia baiana", e nascido em 1887 — um ano antes  da assinatura da Lei Áurea — João simboliza a resistência cultural negra diante da repressão estatal e do racismo institucionalizado que marcaram os primeiros anos da República.

No Brasil recém-saído da escravidão, a liberdade dos negros era constantemente vigiada e criminalizada. O Código Penal de 1890, primeiro da era republicana, incluiu a chamada Lei da Vadiagem, usada como instrumento para prender ex-escravizados sob a acusação de “ociosidade”. João da Baiana, músico de talento precoce, era alvo fácil: pobre, negro e com um pandeiro na mão. 

No contexto de uma política de branquização — que incentivou a vinda de imigrantes europeus e japoneses —, o samba, o candomblé e outras manifestações culturais negras foram criminalizadas. João, um dos fundadores do samba ao lado de Donga e Pixinguinha, era chamado nos jornais da época de “vagabundo” e “malandro”, categorias também associadas ao crime. A salvação do artista veio por um gesto inusitado: o senador Pinheiro Machado, fundador do Partido Republicano Conservador e admirador da música de João, autografou seu pandeiro. Daquele dia em diante, toda vez que a polícia o abordava, bastava mostrar a assinatura para evitar a prisão.

João da Baiana foi muito mais do que um perseguido pela repressão. Era um artista completo: compositor, cantor, passista e percussionista extraordinário, considerado um dos primeiros a introduzir instrumentos de percussão no choro — até então um gênero centrado em cordas e sopros. “Ele tocava o pandeiro adufe, quase um tamborzinho, com uma precisão incrível. Parecia que tinha uma bateria na frente dele”, lembra o compositor e estudioso Rubem Confete.

Nascido na zona portuária do Rio e criado na Rua Senador Pompeu, na Cidade Nova, João começou cedo a frequentar rodas de samba e cultos de macumba, ainda na infância. Participou dos primeiros ranchos carnavalescos como porta-machado e aprendeu a tocar pandeiro com sua mãe. Foi amigo de infância de Heitor dos Prazeres e Donga. Com Pixinguinha, formou o grupo “Os Oito Batutas”, mas não viajou com eles à Europa em 1922 por conta de seu emprego como funcionário da Marinha.

Ao longo da carreira, compôs músicas que retratavam com ironia e lirismo a realidade do povo negro, como Batuque na Cozinha, Cabide de Molambo, Mulher Cruel (com Donga e Pixinguinha) e O Futuro é uma Caveira. Em 1968, gravou o LP Gente da Antiga, ao lado de Pixinguinha e Clementina de Jesus. Já idoso, viveu na Casa dos Artistas, em Jacarepaguá, e faleceu em 12 de junho de 1974, aos 87 anos.

Sua elegância era reconhecida por todos: paletó jaquetão, chapéu gelot, gravata bordô, calça risca de giz e sapato bicolor. Era figura constante no Largo de São Francisco da Prainha, onde cumprimentava a vizinhança e distribuía balas às crianças da Rádio Nacional, onde também trabalhou.

João da Baiana, como lembra o depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS), foi pioneiro ao introduzir o pandeiro no samba de roda e nas agremiações carnavalescas. “Na época, o pandeiro era só usado em orquestras. No samba, quem introduziu fui eu mesmo”, afirmou. Em 1966, foi o primeiro entrevistado do projeto de história oral do MIS, que marcou também o nascimento simbólico do museu.

Cinco décadas após sua morte, sua trajetória ecoa na luta dos artistas negros de hoje. A mobilização popular pela libertação de MC Poze do Rodo lembrou outro ícone do samba: Wilson das Neves, autor do clássico O Dia em que o Morro Descer e Não For Carnaval, uma potente denúncia do abandono social vivido nos morros e favelas. Das Neves, assim como João da Baiana, entendeu que o samba nunca foi apenas música — foi denúncia, memória e resistência. E que, para muitos, carregar um pandeiro é, ainda hoje, um ato político.