A escravidão no Piauí e no Brasil

A população escrava no Piauí atingiu índices tão elevados quanto ao resto do Brasil: mais da metade dos habitantes

Foto: Cidade Verde
Escravidão

Por Claudete Maria Miranda Dias, professora, no Facebook 

Uma das formas mais desumanas de exploração do trabalho é, sem dúvida, a escravidão, cuja existência remonta à Idade Medieval. Em todo o Brasil, o trabalho escravo foi a forma predominante para implementar a colonização, sendo abolida, oficialmente, apenas em 1888, após a luta incessante dos escravos, pela liberdade e bandeira do movimento abolicionista. Todo dia 13 de maio, marca a data da assinatura da Lei Áurea, que oficializou o fim da escravidão no Brasil.

É mais uma data no calendário da história oficial, um símbolo para legitimar ações de autoridades que passaram para a história como heróis, minimizando o papel de uma imensa massa anônima, sem rosto, que lutou durante séculos contra a escravidão, pela liberdade. É lugar comum dizer que a escravidão ainda não acabou e que a famosa Lei Áurea apenas amenizou o calvário e o martírio de centenas de milhares de seres humanos, explorados como animais, pelo carcomido sistema colonial escravista, nas fazendas, engenhos, lavouras, lares do Brasil nosso de cada dia, que tem uma dívida histórica com a população negra.

A questão da escravidão no Brasil ainda não foi de todo resolvida: há 133 anos depois de abolida, permanece sob outras formas de exploração. Mas, sempre haverá uma esperança de um dia ter fim, completamente, apesar de reconhecer que o sentimento/prática da exploração está entranhado na mente dos governos e nas relações sociais, devido, exatamente, à longa duração da escravidão que deixou marcas indeléveis na sociedade brasileira.

Em três séculos de regime escravista, milhões de africanos entraram no Brasil, por meio do tráfico, cuja população negra alcança, atualmente, mais de 40%. A escravidão é uma mancha na história do Brasil, a ponto de Rui Barbosa, enquanto ministro de estado, tentar apagá-la, ao ordenar a queima dos arquivos pelo Brasil afora. No entanto, muitos vestígios desse passado violento, que marcaram a sociedade brasileira a ferro quente, deixaram cicatrizes profundas nos costumes, na cultura, nos hábitos, na memória, corações e mentes.

A escravidão predominou como sustentação da estrutura econômica e social da colonização portuguesa, no Brasil, onde foi implantada em um momento de transição do feudalismo para o mercantilismo. Paradoxalmente, a escravidão trazida para o Brasil, era a forma de exploração de trabalho que os colonizadores entenderam mais lucrativa para a acumulação de riquezas: a utilização do trabalho assalariado era encarada como pouco produtiva para os interesses mercantilistas da época, que exigiam a expansão e renovação de mercados e grande contingente de trabalhadores. Isto explica o rentável tráfico de africanos e o que é mais intrigante, a formação de uma “ideologia escravista”, um conjunto de ideias, tradições e valores que remontam à época da Antiguidade, com os filósofos Aristóteles e Platão, defendendo a escravidão como imprescindível: uns nasceriam para a submissão outros superiores.

Importantes estudos de pesquisas de mestrado e doutorado abordam a escravidão no Piauí que desmontam a ideia de que, diferente de outras regiões brasileiras, não teria havido escravidão ou que ela teria sido mais amena, devido ao fato da economia pecuarista extensiva precisar de reduzida mão de obra e ter características livres: o vaqueiro trabalhava em vastos domínios de terras, podendo se locomover com as boiadas e a pastagem ocupar amplas áreas. Porém, a população escrava no Piauí atingiu índices tão elevados quanto ao resto do Brasil: mais da metade dos habitantes. O mito de um Piauí sem escravidão foi construído por uma minoria branca.

A escrupulosa pesquisa, em relatos de viajantes, inventários, testamentos, processos civis e criminais e correspondências ajuda a desmascarar o amplo significado da escravidão no Piauí: não existe escravidão amena, a violência é intrínseca e no Piauí não foi diferente. Os mecanismos repressores, o constrangimento físico como castigos e maus tratos, a inexistência de rendimentos, são características da escravidão, verificadas em todo o Brasil, e no Piauí não foi diferente: os africanos desempenharam variadas atividades - desde vaqueiros, roceiros, ferreiros, carpinteiros, oleiros, domésticos, entre outros.

Outro mito que vigorou no Brasil é de que o africano foi usado como escravo devido ao fato dos nativos (índios) serem preguiçosos e selvagens e pela resistência demonstrada em aceitar serem escravos. Mito que foi igualmente desmontado: desde quando houve escravidão negra e nativa houve resistência e luta. A Nova História esclareceu, de uma vez por todas, que os nativos eram livres, viviam em harmonia com a natureza, não ambicionavam acumular riquezas, por isso, não aceitavam ser escravos, seus valores, costumes e cultura eram mais valiosos. Mesmo assim, muitos foram escravizados, aldeados, expropriados, mortos, na guerra da colonização, que, no Piauí, durou quase duzentos anos,. Os africanos, por sua vez, resistiam desde o momento de sua captura por traficantes avarentos e ambiciosos; resistiam nos navios, por isso eram acorrentados, resistiam ao desembarcar nos portos brasileiros, nas fazendas e lavouras de todo o Brasil.

O fim da escravidão deve-se, não apenas a essa ou aquela autoridade, aos fatores externos, ao movimento abolicionista ou à Lei Áurea, mas sobretudo à resistência e ás várias formas de lutas : rebeliões, insurreições, revoltas, quilombos, fugas, assassinatos, suicídios, abortos, em manifestações culturais e folclóricas, em fim, demonstraram que nunca aceitaram ser escravos.